terça-feira, 5 de junho de 2018

Futebol e mercado: o futebol está morrendo?


Como o Capitalismo Matou o Futebol



Os times entram juntos em campo. Em perfeita ordem. Ao redor do gramado existe um estádio novo, imponente, moderno – e igual a todos os outros. Um certo exigido padrão. Corinthians e Palmeiras perderam suas malocas e ganharam arenas. Os lugares são marcados, tudo em nome da disciplina. Em volta, telões que estampam as mensagens dos patrocinadores, os verdadeiros donos da festa.
Juiz apita e sabemos que a bola será agredida por 90 minutos. A bola e o nosso amor por uma camisa. Os times jogam todos mais ou menos igual. Faltas, simulações, cruzamentos na área, umas poucas chances de gol. Há muitos anos deixamos de dar valor ao que acontece dentro de campo para voltar nossa atenção para o que se passa fora dele. Abandonado e retrancado, o futebol começou a adoecer.
Hoje trata-se de um jogo que deveria, se tivesse vergonha na cara, coisa que não tem, não aceitar mais ser chamado de futebol. É uma atividade esportiva, sem dúvida, mas virou alguma coisa entre o nosso antigo futebol e o futebol americano, esse que tão bem sabe usar a ordem e a beleza que só o lucro produz. Corre-se um pouco, falta. Bate-se, avança-se mais uns metros, outra falta. Bate-se, avança-se mais uns metros e ficamos assim até que, com sorte ou erro do rival, chega-se perto do gol, ou o adversário recupera a posse da bola e o balé se inverte.
Estive dia desses em uma arena em New Jersey para ver um jogo de futebol americano. Tudo acontece na mais perfeita ordem. O jogo rola e os patrocinadores fazem a festa do lado de fora. Até a hora em que deve-se abanar a toalhinha gentil e gratuitamente oferecida por uma empresa, com o logo devidamente estampado, é anunciada pelo alto-falante. O estádio fica bonito, todos em pé, braços erguidos, toalhinhas tremulando.
Mas nada é espontâneo, e a beleza das coisas armadas e premeditadas jamais alcançará a grandiosidade das manifestações naturais. Somos uma sociedade orquestrada, manipulada, bovina. O que colabora para que permaneçamos quietos, isolados, passivos. Aceitamos o controle de bom grado porque a alternativa – alertam os veículos de comunicação – é o terrorismo que está à espreita. Precisamos de proteção, e em nome dela temos que abrir mão da liberdade. Enquanto isso, que tal comprar esse produto aqui ou aquele ali?
No nosso futebol tudo ficou rigorosamente igual. Até o erro do juiz é igual. Não existe mais o erro original, aquele sobre o qual falaremos no dia seguinte. Os times não estão mais ali por mim ou por você. Estão ali em nome do lucro e da satisfação do mercado – e o mercado não é você ou eu, o mercado é o patrocinador, que é quem paga a festa e gera o lucro. Somos descartáveis nessa triângulação. Aliás, hoje há jogos em que somos proibidos de entrar no estádio.
O torcedor de sofá é o torcedor ideal. Não briga – pelo menos não publicamente – dá audiência – e audiência gera lucro.
Como padronizou-se tudo, não driblamos mais. O drible teve a decência de morrer abraçado à espontaneidade. Quando, num jogo, alguma coisa parecida acontece – ocasionalmente, executado por um jogador desavisado que teima em ressuscitá-lo – quem está no estádio vibra como se fosse um gol.
Mas quem está no estádio? Não mais o torcedor. Hoje estádio é feito de cliente, gente com poder aquisitivo para consumir: de camisas e bonés a comes e bebes. Esse é o fequentador que interessa. A fidelidade não está no grito apaixonado e desesperado, a fidelidade é um número. Uma medida exata. Quanto mais você consumir, mais fiel será considerado. A subjetividade foi enterrada com o drible, faleceram no mesmo acidente.
E toda a vez que me lembro que a subjetividade morreu, penso em Eça de Queirós e em suas Cartas à Fradique Mendes
“Apesar de séculos de geometria me afirmarem que a linha reta é a mais curta distância entre dois pontos, se eu achasse que para subir da porta do Hotel Universal à porta da Casa Havanesa me saía mais direto e breve rodear pelo bairro de São Martinho e pelos Altos da Graça, declararia logo à secular geometria que a distância mais curta entre dois pontos é uma curva vadia e delirante”. Hoje não nos permitimos mais fazer curvas vadias e delirante, mas apenas a corretíssima linha reta, previamente traçada, calculada e aprovada por especialistas.
No mundo ideal, um mundo que levasse o subjetivo na mais alta conta e não oprimisse multidões em nome da fúria do lucro, um estádio construído exclusivamente para o Corinthians seria 80% feito de geral. Uma obra arquitetada filosoficamente para o time do povo. Uma casa, como sempre quisemos. Um estádio para o Zé Mané, esse ilustre, que estaria ali todas as semanas, a despeito da posição do time na tabela, do frio ou da chuva (às favas com a cobertura, as melhores chuvas que tomei na vida foram dentro de um estádio) para incentivar. Mas não se incentiva mais.
O que vale agora é o “essa noite teremos que ganhar”. Até o “bando de louco” foi devidamente embalado e virou produto de marketing. Pelo que sei, seu criador, um apaixonado de arquibancada, nem foi levado em conta nessa coreografia pornô que fazemos todos os dias para o prazer hedonista do Deus Mercado. Produto bom vai logo para as mãos de quem pode lucrar em massa com ele, a despeito do pontapé moral que tenhamos que dar no apaixonado que o inventou. Ganhar é obrigação, e o xingamento a forma de fazer com que nos escutem.
O capitalismo só quer saber de vencedores, não há espaço para derrotados e fracassados, muito menos para o espontâneo, ainda que só a derrota e o fracasso ensinem e formem caráter. Mas não pode mais. Perder é uma vergonha. Time que só perde não fatura muito em direito de imagem, não vende produtos, não conquista patrocinadores polpudos. Os jogadores entram juntos, em perfeita ordem, e sabem que estarão se apresentando para o patrocinador, não mais para você ou para mim. A verdadeira relação entre o autêntico futebol brasileiro e o atual sistema capitalista sob o qual vivemos – e morremos – se chama contradição.
Quando eu era pequena me ensinaram que o comunismo era horrível porque ele deixava todo mundo igual. Era uma uniformidade miserável esse troço de comunismo, por isso era urgente evitar. 
Mas hoje entendo que o que uniformiza é o capitalismo, esse que vive do padrão, das planilhas e dos cálculos exatos para se chegar ao lucro e à fórmulas vencedoras. 
O futebol não é mais sentido, apenas estatisticamente analisado. Time A fez X cruzamentos na área. Time B teve 52% de posse de bola. Time A nunca venceu time B jogando com uniforme 2 em jogos das 16h. Time B tem 32% de aproveitamento em partidas fora de casa… 
Até que mudemos o sistema econômico que nos embala o futebol continuará a morrer, um domingo por vez.

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