sábado, 12 de maio de 2018

Fascistas impõe agenda, mesmo sendo minoria

Mesmo minoria, fascistas podem impor agenda

O vocabulário político brasileiro, nos últimos anos, recolocou em destaque no cotidiano a palavra “fascista”. A disputa não mais opõe apenas comunistas e petralhas a coxinhas, como ocorria acentuadamente a partir de 2013, quando do início das manifestações de rua conhecidas como jornadas de junho. Coxinha, termo desdenhoso e um tanto caricato, parece ter perdido vigor.
Fascista, muito mais forte e que nos remete a duas grandes tragédias surgidas no entreguerras – o autoritarismo italiano e a barbárie nazista – atualmente pontua grande parte das conversas de militantes ou simpatizantes de esquerda para se referir ao campo político adversário.
No Brasil, onde o maior e mais bem organizado movimento fascista foi o integralismo, cujo auge se deu nas décadas de 1920 e 1930, seria generalização classificar todo o atual campo conservador de fascista? Ou precipitado temer que a conjuntura desemboque numa solução fascista?
Créditos: autor desconhecido
Sim e não, acredita o historiador e pesquisador Odilon Caldeira Neto, autor do livro “Sob o Signo do Sigma – Integralismo, Neointegralismo e Antissemitismo”.
Os grupos de inspiração fascista hoje existentes no Brasil são pequenos e dispersos, afirma Odilon, cujas teses de mestrado e doutorado debruçaram-se justamente sobre o integralismo do século passado e sua sobrevivência nos dias atuais.
Porém, alerta, a pequenez numérica e a fragmentação podem ser elementos que aumentem exponencialmente o alcance da pauta fascista, se tais grupos souberem atiçar fogo.
Agitação e divulgação
“Os grupos neointegralistas estão presentes em diferentes estados da Nação, mais especialmente no Sul e Sudeste, com predominância em São Paulo e no Rio. São grupos pequenos, não mais que algumas centenas, que se articulam em espaços de memória, em confraternizações, mas eles atuam também pela internet. Para além desses grupos neointegralistas, temos os grupos neonazistas, que veem os estados do Sul como regiões idílicas desse pensamento político.
Ambos são grupos fragmentados, mas a própria fragmentação imprime formas alternativas de organização. Eles são eficazes no papel de agitação e divulgação”, afirma Odilon, que também é integrante do observatório Direitas: História e Memória.
“Quando isso acontece?”, continua o historiador. “Justamente quando as pautas conservadoras se radicalizam. Esses grupos levam as suas bandeiras e auxiliam a radicalizar a pauta da direita. Em 2013, esses grupos neointegralistas e neonazistas marcharam. Eles também apoiam processos comandados pelo MBL e Vem Pra Rua, dão corpo a essa agitação política. E, embora continuem na marginalidade, suas pautas, que estavam fragmentadas, ensejam formas organizadas e podem até surgir na forma de candidaturas como a do Jair Bolsonaro – a mais bem acabada expressão do fascismo hoje – e de outras pautas políticas. Eles podem hegemonizar o debate mesmo sendo pequenos em termos quantitativos”, alerta.
Não por acaso, foi justamente em 2013 que palavras de ordem antifascistas voltaram a compor, depois de período de aparente bonança das forças progressistas, atos políticos e passeatas. Na cidade de São Paulo, em 20 de junho daquele ano, manifestantes que portavam bandeiras de partidos de esquerda e até mesmo do MPL (Movimento Passe Livre, que deu início às primeiras e diminutas ações contra o aumento da passagem de ônibus) foram agredidos e impedidos de marchar na Avenida Paulista, coberta por um mar de gente que, nos dias anteriores, havia transformado aquelas manifestações em acontecimento de grande porte, replicado por todo o Brasil.

Extinguir o adversário
Embora do ponto de vista acadêmico e historiográfico seja impreciso classificar todo o campo conservador como fascista, ele pode ser cooptado pelos fascistas.
A principal diferença entre um conservador e um fascista propriamente dito é que este último, segundo definição do professor Odilon, “busca romper com os planos institucionais, no nosso caso uma democracia liberal, e vai procurar neutralizar a política, usar de violência e extinguir os inimigos políticos e as categorias indesejáveis, os inimigos que são imaginados pelos fascistas”.
Tiros contra o Acampamento Marisa Letícia, em Curitiba, e contra a Caravana Lula Pelo Brasil, no interior do mesmo Paraná, igualam-se a táticas exibidas com orgulho pelos camisas-verdes (como eram chamados os integrantes das milícias paramilitares integralistas) nos anos 20 e 30 do século passado. O assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes, uma versão mais cruel. O rompimento institucional pelas forças armadas, assim como defendido por pequenos grupos hoje, também foi considerado válido pelos integralistas de outrora.
A capacidade dos fascistas ou neointegralistas de agitação para radicalizar a agenda da direita é facilitada pela óbvia similaridade de pautas conservadoras. Racismo, homofobia, machismo e a aversão – quando não o ódio – ao que se considera diferente são terreno fértil para o germe fascista.
Créditos: EBC
Mimetismo
É bem provável que o maior perigo desses sentimentos e valores não resida em sua expressão aberta, mas em seu mimetismo. É o que dormita sob a aparente inocência de mensagens de harmonia e paz social que podem ser encontradas, por exemplo, nos perfis dos neointegralistas nas redes sociais.
Com ideias assim, também espalharam o fascismo alguns dos principais articuladores das teses integralistas no século passado. Em um livro chamado “Ideologia e Mobilização Popular”, a filósofa Marilena Chauí analisa a construção do discurso integralista.
“A questão social deve ser resolvida pela cooperação de todos, conforme a justiça e o desejo de progredir e melhorar”, afirma, em trecho de seus escritos, analisado por Chauí, Plínio Salgado, um dos fundadores da Ação Integralista Brasileira (AIB) e tido por contemporâneos como inteligente, culto e intelectual, imagem curiosamente cultivada por autoritários até hoje e que costuma ser aceita por muitos.

Meritocracia
Logo na sequência da mesma frase iniciada acima, Salgado deixa entrever um pouco mais de seu ideário. “O direito de propriedade é fundamental para nós, considerado no seu caráter natural e pessoal”. A propriedade, definida como “natural”, avalizava a oligarquia agrária de então.
A mensagem de que cada um pode e deve melhorar de vida segundo suas capacidades individuais e seu esforço é reforçada pelo integralismo. “Pretendemos dar meios a todos para que possam galgar, pelas suas qualidades, pelo trabalho e pela constância uma posição cada vez melhor (...) Não ensinamos ao operário a doutrina da covardia, da desilusão, do ódio, da renúncia como o comunismo e a anarquia; (grifo nosso) nem a doutrina da submissão, do ostracismo inevitável, de conformação com as imposições dos políticos, da democracia liberal”, ainda segundo Salgado.
Nessa profissão de fé, os integralistas, de uma só tacada, diferem aqueles que trabalham para seu sustento daqueles que podem “subir na vida”; atacam o movimento operário na figura de seus dois principais representantes à época, desqualificam a política e, indisfarçavelmente, colocam em xeque a eficácia da democracia.
Em seu livro, Marilena Chauí enxerga na classe média o destinatário dessas mensagens. Em trecho colhido de livro de outro ideólogo do integralismo, Miguel Reale, a conclusão fica explícita: “Essa (a classe média) é a classe que faz a revolução porque é a portadora da ideia. As outras camadas sociais, as superiores e as inferiores, recebem dela a seiva vivificadora, mas as últimas sobem de mãos dadas com ela. Quando os homens da classe média perdem sua posição social e econômica, dá-se uma revolução que pode ser tanto na linha do desespero bolchevista como no sentido orgânicos do integralismo”.
“Superiores e inferiores”
O recurso às frustrações da classe média como elemento de mobilização, assim como o elogio desimpedido à sua provável singularidade em relação aos “inferiores”, por ser detentora daquilo que Reale chama de “a ideia”, e a referência a possível dependência dos “superiores”, talvez não seja tão explícita nos dias atuais, mas a mesma fórmula argumentativa é onipresente. Especialmente na difusão implícita, por setores da mídia, de valores como a preguiça ou incapacidade dos pobres para melhorar de vida, na análise de Caldeira Neto.
“Esse é um discurso que é fomentado por várias instâncias institucionais, como a grande imprensa e seu elogio à desigualdade. Dizem que o fascismo é fascinante, né? Esses conceitos se diluem. Acabam por se enraizar na sociedade brasileira”, afirma o professor.
Em sua análise, Marilena Chauí também demonstra como a argumentação dos textos integralistas aponta fatos e momentos históricos, distanciados no tempo, saltando as contradições presentes no processo e dando-lhes aspecto de linearidade e lógica pronta. Isso dá a falsa impressão, ao interlocutor, de plena compreensão dos problemas e é uma senha para que este se assenhore dos temas e compre a versão do especialista.

União e harmonia?
Para os integralistas de outrora, tudo vinha embalado com uma mensagem de união fraterna, de cooperação entre classes, de fim das organizações sindicais – inúteis diante da superação da luta de classes. Símbolos maiores dessa mensagem de harmonia social era o grito de guerra “Anauê” (de origem tupi, significa “Você é Meu Irmão”) e a letra grega Sigma (que nas operações matemáticas significa soma, consoante à união dos integralistas).
União e harmonia desde que as classes “inferiores” não pretendessem protagonismo político. A mensagem anticomunista, tão presente nos momentos que antecederam o golpe contra Dilma Rousseff, disfarçava também nos anos 1920 e 1930 a contrariedade com o possível fortalecimento das organizações operárias, conclui Chauí. E impulsionava uma das máximas fascistas, a da regeneração ou resgate da nação (“Esta aviltante propaganda comunista que desrespeita todos os dias a bandeira sagrada da Pátria”, segundo Reale).
Por convicções como essas, os integralistas apoiaram a Lei de Sindicalização encaminhada pelo ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, Lindolpho Collor, em março de 1931, que assim a justificou, em conversa com empresários: “Ou os operários aceitam a ação do Ministério do Trabalho, que traz uma mentalidade nova, de corporação, ou se consideram dentro de uma questão de polícia”.
Os integralistas foram entusiastas também da chamada Lei Monstro, ou lei de Segurança Nacional, criada em 1935 pelo governo Vargas para conter, entre outros, os movimentos reivindicatórios. Por essa legislação, greve era classificada como crime, por exemplo. Mais sutis, Congresso Nacional e governo federal, em 2017, aprovaram uma reforma trabalhista que pretende esvaziar a função sindical e isolar os trabalhadores.
Fundada em 1932 como movimento, a Ação Integralista Brasileira tornou-se partido em 1936. Atingiu seu auge, com mais de um milhão de integrantes. Elegeu 500 vereadores e 24 prefeitos naquele ano. Preparou-se para disputar as eleições nacionais em 1938, com Plínio Salgado na cabeça de chapa.
Porém, diante da agitação política daquele ano e dos anteriores – como a chamada Intentona, as greves anarquistas e a paralisação de 72 dias dos gráficos de São Paulo – e de forte pressão, Getúlio planejou suspender eleições. Os integralistas, sabendo das intenções do presidente, o apoiaram. Unidade e harmonia, desde que sem democracia. Não sabiam que o presidente e seu Estado Novo iriam banir também a AIB do processo político. Os integralistas tentaram dois levantes em 38, sufocados pelas forças armadas.
A família e Deus, defendidos pelos integralistas como “pilares” da Nação, também serviam de justificativa a objetivos segregacionistas. Assim como na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler, sexo fora do matrimônio considerado “natural” ou “divino” eram condenados.
Ideais de harmonia e disciplina, comuns às três doutrinas autoritárias, podiam – e ainda podem – preconizar todo tipo de arbitrariedade, mesmo nem sempre recorrendo à pregação explícita ou ostensiva do proibido, do errado ou do punível.
Assim, muitas vezes implicitamente, com mensagens difusas ou disfarçadas de brandura e boas intenções, o fascismo vai se instalando e, de repente, não causa mais espanto se um trabalhador pretender votar em alguém que define o proletariado como vagabundo, ou uma pacata dona de casa considerar natural o linchamento de alguém acusado de furto ou, ainda, um funcionário público concluir que o Estado é grande demais.
O chamado cidadão de bem, ainda que jure estar sensibilizado com a precária situação de um semelhante, avaliar como lógico desmontar ocupações de prédios abandonados para “proteger” aqueles que serão colocados nas ruas. Ou parcelas da população acreditarem que um golpe é normal e, até, positivo.
Publicado pela Fundação Perseu Abramo
https://fpabramo.org.br/2018/05/07/mesmo-minoria-fascistas-podem-impor-agenda/

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