terça-feira, 17 de novembro de 2015

Turismo chega a comunidades quilombolas de Minas Gerais.

Geralda Oliveira passou os últimos 26 anos trabalhando como empregada doméstica em São Paulo, mas agora está de volta à comunidade de Caititu - Gustavo Miranda / Agência O Globo

Danças, culinária e rituais são atrações dos grupos no Vale do Jequitinhonha, que buscam na iniciativa
uma nova forma de romper ciclo de miséria e isolamento.

POR CHICO OTAVIO
15/11/2015 7:00 / atualizado 15/11/2015 13:28
Suor descendo pelo rosto, roupas cobertas de poeira e garganta seca. Assim que o grupo de mulheres da comunidade de Caititu do Meio rompia em Berilo, cidade do Médio Jequitinhonha a 550 quilômetros de Belo Horizonte, após duas horas de caminhada sob um sol abrasivo, muita gente torcia o nariz: “Ih, lá vêm as pretas feiticeiras do Caititu.’’ Uma delas, a jovem Maria Geralda Gomes Oliveira, corria para pedir um copo d’água à primeira janela. Quando o morador dava-lhe as costas sem responder, Geralda não sabia o que fazer: se esperava pela água ou se saía de fininho, cabeça baixa, sem olhar para trás.

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Três décadas depois, Geralda ergue a cabeça para evoluir ao ritmo do batuque. Não é mais “preta feiticeira’’. É quilombola, condição já reconhecida oficialmente. E o Feitiço de Caititu, razão do preconceito que as deixava de garganta seca, é agora o legado cultural que poderá livrá-las do ciclo de miséria que assola uma das regiões mais pobres do país. Para vencer o abandono histórico, a carência, a fome, os latifúndios, a grilagem de terras e, para agravar, uma seca recente nunca vista por ali, as comunidades quilombolas do Jequitinhonha, o “vale da miséria” mineiro, querem virar atração turística. Para isso, estão tirando do fundo do baú da memória uma tradição ironicamente preservada pelo isolamento imposto pelo descaso.

O Brasil tem hoje 5 mil comunidades quilombolas, de acordo com o recém-lançado “Mocambos e quilombos, a história do campesinato negro no Brasil”, do professor de História Flávio Gomes. Porém, menos de 10% foram reconhecidas pelo governo federal. No caso de Minas, são 300 grupos certificados, formados provavelmente após o declínio da mineração, por escravos fugidos e uma população negra livre que se juntaram para iniciar o processo de ocupação de terras devolutas nos grotões do estado no fim do século XIX.

É neste pedaço de terra arenosa, cortada por leitos de rios secos, que o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (Cedefes), uma ONG de Belo Horizonte, está abrindo ao turismo a Rota dos Quilombos, que vai cruzar 12 comunidades do Médio Jequitinhonha. Especialistas presumem que a região tenha servido de refúgio às últimas gerações de africanos, deslocados antes e depois da Lei Áurea da economia cafeeira de Juiz de Fora. Este isolamento, também provocado pelo estigma, preservou quase intacto um conjunto singular de manifestações culturais, que mistura o batuque com a viola, a culinária mineira com a nordestina, reinterpreta a tradição católica e ainda fia o algodão com os mesmos métodos e maquinário dos ancestrais.


Ouvi-los cantar no galpão do centro comunitário do Córrego do Rocha, em Chapada do Norte, a 528 quilômetros da capital, é como entrar num túnel do tempo: “Bambu, quero ver quebrar/ Êêêê bambu, cê quebra já/ Cê quebra devagarinho/ Êêêê bambu/ Pra não machucar.’’ 

Mulher beneficia algodão no Córrego do Rocha: mesmos métodos e maquinário dos ancestrais - Gustavo Miranda / Agência O Globo

No passado, a música servia para amenizar o sofrimento dos escravos nas lavras de diamantes e ouro da região. Mas a liberdade não reduziu a importância do canto de trabalho, derivado do vissungo (ocisungo, hino ou canção no idioma umbundo, de Angola), que passou a fazer parte da rotina dos habitantes do Médio Jequitinhonha, continuando a ajudá-los a vencer a rudeza do sertão. As letras são uma mescla de elementos do campo, principalmente da lavoura de subsistência, com promessas de um amor inocente perdido no tempo: “Roda morena, morena torna a rodar/ Nunca vi em quem tem amor despedida sem chorar.’’

Se os anos não conseguiram apagar o repertório da memória, os novos tempos mostram-se implacáveis com esta música secular. Enquanto os mais jovens parecem encantados com o funk da cidade grande, os idosos evitam as cantorias regadas a bebidas alcoólicas para não despertar a ira dos pastores que conduzem um amplo processo de evangelização do sertão. O camponês aposentado Vicente Alves dos Santos, de 66 anos, ainda sabe as músicas na ponta da língua, mas prefere o templo cristão às rodas de viola e sanfona onde “não demora a aparecer confusão’’.

A Rota dos Quilombos, que está trazendo Vicente de volta à cantoria, por não ameaçar seus valores religiosos, é um reencontro das comunidades negras do vale com um passado quase esquecido. Maria Geralda, que passou os últimos 26 anos trabalhando como empregada doméstica em São Paulo, está de volta ao Caititu. Ela tem pressa. Quer aprender rápido as congadas — um bailado dramático com canto e música que recria a coroação de um rei do Congo —, a tempo de receber na comunidade a primeira leva de turistas, prevista para o início de 2016.

O melhor remédio contra o esquecimento é conviver com Alessandro Borges de Araújo, de 26 anos. Ele é uma espécie de guardião da memória dos quilombos do semiárido mineiro, comandando o batuque do Grupo de Cultura Viva Berilo. Não há uma letra escrita, um arquivo digital que o socorra. O jovem, que aprendeu a cantar com a mãe quando iam pegar água no rio, assume com recato a condição de Mestre dos Santos Reis. Ele é um dos encarregados dos festejos de Nossa Senhora do Rosário, em outubro, com muitas danças e cantos, vestimentas de saiões e turbantes brancos, rodas de tambores e batuques, com uma mistura de elementos cristãos católicos e rituais de religiões de origem africana.

Ritual de matriz africana realizado dentro de igreja: sincretismo - Gustavo Miranda / Agência O Globo

O batuque de Alessandro foi acolhido pela casa paroquial da Igreja Matriz de Berilo, onde ocupa uma salinha nos fundos, colorida pelos instrumentos de percussão, por faixas e outros elementos da tradição. Mas nem sempre foi assim. Para evoluir numa festa católica, foi preciso vencer a resistência dos padres e de certa parcela da população. Ainda hoje, o Mestre dos Santos Reis é visto com alguma reserva. Quando não está cantando, ele recolhe o lixo da cidade. De luvas encardidas e máscara, Alessandro é gari da Prefeitura de Berilo.

Para evitar que toda essa riqueza cultural termine numa caçamba de lixo, as comunidades quilombolas passaram a cobrar políticas públicas mais efetivas. Uma resposta importante foi dada este ano pelo governo mineiro, com a criação da Diretoria de Povos Tradicionais (envolve também as comunidades indígenas), vinculada à Secretaria Estadual de Desenvolvimento Agrário. Cabe a Vandeli Paulo dos Santos, 34 anos, nascido e criado no Quilombo Santa Cruz, no Vale do Mucuri, cuidar de mais de 500 comunidades identificadas, 300 delas já certificadas, e uma imensa lista de carências, agravada pela distância, a começar pela falta de titulação das terras.

O processo não é simples. A regularização fundiária, que vem depois da certificação do quilombo, exige o recadastramento das famílias. Para desapropriar as terras, muitas delas devolutas, o governo mineiro precisa analisar milhares de documentos, há anos arquivados e até guardados em sacos de lixo nos cartórios. O próximo passo é convencer os moradores a aceitar a emissão do título coletivo, caminho mais rápido para a posse definitiva das propriedades. Embora o título seja inalienável, indivisível, intransferível e imprescritível, os quilombolas desconfiam. Não aceitam a ideia de dividir as terras com todos, achando que acabarão por perdê-las.

A regularização é sinônimo de créditos nos bancos e, particularmente para os moradores do semiárido, de acesso à água. A seca, que veio com uma força inédita este ano, arrasa a agricultura da região.

José Nilson Araújo da Costa, presidente da Associação de Agricultores Familiares e Feirantes de Berilo, alerta que a estiagem agravou o êxodo rural. Homens que, no passado, migravam para a colheita de cana e café em São Paulo, produzindo o fenômeno das “viúvas de maridos vivos’’, estão seguindo para o estado vizinho com a família toda, deixando para trás um imenso vazio demográfico e hídrico.

Geraldo Magela, de 62 anos, perdeu as contas dos anos vividos como boia-fria em São Paulo. Hoje, finalmente fixou-se como auxiliar de serviços gerais na Escola Municipal Nossa Senhora Aparecida, em Chapada do Norte. Ele é um dos agentes socioambientais quilombolas, treinados nos últimos dois anos pelo Cedefes para guiar os futuros turistas pela Rota dos Quilombos, convencendo-os de que a pobreza física contrasta com uma inexplorada fortuna cultural. O objetivo básico do projeto é oferecer às populações locais uma alternativa de renda.

A FORÇA DE UMA MATRIARCA
Estas muitas idas e vindas de Geraldo, junto com outros seis irmãos homens, serviu para reafirmar o poder da matriarca da família, Isolina Antônia de Jesus, de 91 anos, espécie de rainha-mãe da comunidade de 60 famílias de Caititu do Meio, a quem coube cuidar das mulheres e crianças. A habilidade de Dona Duquinha, como é chamada, na produção de panelas de barro garantiu a sobrevivência do clã — são os potes de barro da região que servem até hoje a comida na Quinta-feira do Angu na Festa de Nossa Senhora do Rosário.
— Eu andava oito quilômetros levando na cabeça cinco potes, cinco botijas, uma talha e um buião de coar café — lembra Dona Duquinha.

Dona Duquinha, que também já lavou roupa para fora, torrou mandioca e fiou algodão (quatro rolos diários, na fase mais produtiva), dá nome à rua principal do quilombo. Ela conta nove filhos, quatro já mortos, e 53 netos. Até hoje, vai às missas dominicais na Igreja de Santa Luzia, uma ermida no núcleo central de Caititu. Suas roupas coloridas, com babados nas bordas, remetem a uma aldeia africana.

A memória está impecável. Abre um sorriso ao recordar-se das festas no Córrego do Buraco, antiga moradia, onde preparava mais de 30 galinhas caipiras. A matriarca é do tempo em que o mesmo riacho era chamado de “córrego sujo’’, quando cortava a área ocupada por comunidades negras, e “córrego limpo’’, assim que entrava na sede do município. Mas a anciã não guarda mágoas, evita as histórias tristes. Só reclama de um incômodo nas pernas, que reduziu os deslocamentos dentro de casa. Na parede, imagens de santos dividem espaço com retratos de parentes.

Quem já experimentou a culinária de Isolina garante que ela sabia o que fazer com as pnelas de barro que fabricava. Mas poucas cozinheiras da região se comparam a Maria Ferreira de Souza Santos, a Nega, da comunidade do Córrego do Rocha, que nocauteou os visitantes naquele início de tarde quente e empoeirado ao extrair do fogão de lenha uma farofa com feijão-de-corda e torresmo, carne de panela temperada com urucum, mamão verde com cebolinha e salada variada.

A culinária é outra joia da tradição quilombola mineira. O calor não foi adversário para Nega, que entrou na cozinha às sete da manhã e deu conta de duas dezenas de visitantes levando à panela três quilos de feijão-de-corda.

Candombe, tamborzada, congado, invernada, curiango, o nove, catira. O baú de tradições dos quilombos mineiros não tem fundo. É difícil acreditar que, depois de tanto treino, eles consigam receber os visitantes de longe — espera-se um fluxo até da Europa — com o distanciamento de um recepcionista de hotel ou de um guia turístico. O visitante de um quilombo é quase um parente que a família ainda não conhecia. Não demora para ele mergulhar neste universo único, que já encantou antropólogos e historiadores e agora abre as portas para os viajantes amadores.


Fonte: G1

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