terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Djonga, o rapper que provoca, incomoda e empodera os jovens negros das quebradas

Nessa segunda-feira de carnaval de BH, 25.02, fui apresentado às músicas do Djonga, pela minha filha Mel, de 14 anos. Ela dizia: "presta atenção nas letras da música, pai. São muito fortes, contra o preconceito, contra a discriminação de pretos e pobres". Arrepiei. Djonga é direto, papo reto, não usa meio termo pra dizer o que pensa e sente. Quando ele chegou para cantar no Bloco Rapique, na Avenida dos Andradas, uma multidão de 30 mil jovens pedia: "Abre alas para o rei!". E o rei do rap deu seu recado.  
Leia um artigo da cientista social Áurea Carolina sobre Djonga.

Djonga, o amor-Próprio de uma geração

Jovem rapper de Belo Horizonte coloca Minas no centro da cena do hip hop no Brasil, buscando romper com as barreiras impostas por uma sociedade escandalosamente desigual.
*Áurea Carolina
"Eu devolvi a autoestima pra BH, isso que é ser hip hop". Com essas palavras, o rapper Djonga adaptava a letra da sua música "Junho de 94", do álbum "O Menino que Queria ser Deus", colocando a sua cidade em equivalência ao seu povo – na letra original: "eu devolvi a autoestima pra minha gente". A mensagem foi passada diante de uma multidão de jovens que compareceram ao show de lançamento do seu mais novo álbum, "Ladrão", no último dia 21 de abril.
Quem conhece a história da cultura hip hop de Belo Horizonte entende a dimensão da frase. Apesar de ser um dos circuitos mais criativos do país, movido desde os anos 1980 por importantes artistas e produtores de rap, grafite e danças urbanas, BH ainda não tinha forjado um grande nome de expressão nacional que fosse representativo da sua cena. Aos 24 anos, Djonga honra a caminhada de muitos que vieram antes dele e encabeça uma fase inédita de projeção do rap mineiro pelo Brasil.
No início do show, Djonga falou dos 80 tiros disparados pelo Exército no dia 7 de abril contra uma família negra na Zona Norte do Rio de Janeiro: "por todas e todos que morreram lutando por essa porra desse país que só mata, que dá 80 tiros em inocente e fala que confundiu". Naquele episódio fatídico, Evaldo dos Santos Rosa, condutor do carro fuzilado, morreu imediatamente. Dias depois, morreu Luciano Macedo, cidadão que foi atingido quando tentou prestar socorro às vítimas.
Chamado de "incidente" pelo porta-voz do presidente da República, que sequer se solidarizou com os sobreviventes, o caso traz à tona, outra vez, o agravamento do processo de militarização da vida e da matança sistemática da população negra e periférica no Brasil, que ultrapassou a taxa desesperadora de 30 homicídios por 100 mil habitantes – uma das mais altas do planeta, conforme o Atlas da Violência 2018.
No terceiro álbum da sua carreira, Djonga subverte a linguagem para recuperar com fúria e determinação o que foi roubado dos seus semelhantes.

Jovens negros como Djonga são os principais alvos desse sistema genocida, resultado de um Estado penal exacerbado pela combinação macabra de encarceramento em massa de pessoas negras e pobres, proibicionismo na política de drogas, proliferação de armas, destruição de direitos sociais, colapso do modelo repressivo de segurança pública, apologia oficial ao ódio e ataques contra as lutas e existências do povo da periferia.

As entranhas do racismo estrutural, comum a todos esses problemas, são expostas com a atitude e a força poética do rapper, que verbalizou na apresentação, no meio do bairro rico da Savassi, o sentido da virada que ele representa: "um preto no maior palco da área dos boy sendo chamado de ladrão, mas sem ser do jeito que eles querem". A casa estava lotada. Os ingressos a R$ 10 esgotaram semanas antes, poucas horas após a abertura das vendas pela internet. A periferia ocupou em peso.

No terceiro álbum da sua carreira, Djonga subverte a linguagem para recuperar com fúria e determinação o que foi roubado dos seus semelhantes. Ele diz na faixa "Hat-Trick (open.spotify.com/) ": pra nós ter autonomia / não compre corrente, abra um negócio / parece que eu tirando / mas na real te chamando pra ser sócio / pensa bem / tirar seus irmão da lama / sua coroa larga o trampo / ou tu vai ser mais um preto / que passou a vida em branco?". E segue na faixa "Bené": "o que vale mais / um jovem negro ou uma grama de pó? / por enquanto ninguém responde / e morre uma (...) / pega a visão / não se perder / não se perder / não se perder, não", alertando para que a juventude negra não seja capturada pela indústria programada do crime e da morte.
Em pleno domingo de Páscoa, o mestre de cerimônias, acompanhando do humorista Yuri Marçal, que participou em diferentes momentos do show, convidou geral a malhar um judas cenográfico. Cantando "fogo nos racista!", a multidão expurgou o símbolo da supremacia branca jogado ao chão: uma máscara com um capuz pontudo de tecido manchado de vermelho, como aqueles dos matadores da Ku Klux Klan. Em sintonia total, vibrava uma geração elevada, capaz de abalar as estruturas desse sistema, orgulhosa de ser quem se é. Na faixa "Voz (open.spotify.com/) ", junto com Doug Now e Chris MC, milhares entoaram o refrão que denuncia o preconceito racial: "sua visão sobre mim  ainda não mudou / não vai ser da forma que tu quer / sempre faço questão de ser quem sou / mais honrado morrer sendo quem é / e tamo aí, né?"

Além de acolher e apoiar jovens artistas como parceiros do seu trabalho, Djonga também levou ao palco sua avó e sua mãe, homenageadas em letras que falam de família e ancestralidade. Na faixa "Bença (open.spotify.com/) ", momento sublime do show, ele ressalta a responsabilidade da paternidade, pai que é do pequeno Jorge, e a importância do exemplo dentro de casa ("é triste ver que os moleque da minha quebrada / não tiveram a mesma sorte que eu / um pai presente"), e recebe a bênção da sua avó, que ainda benzeu a plateia ("que Deus saúde a Gustavo / para poder continuar nesse lindo serviço maravilhoso / que está prestando para todos nós / em nome de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo / que Deus ilumine o caminho de todos").

A musicalidade vai do trap ao samba, passando pelo funk. Djonga fez questão de entoar o hino funkeiro: "eu só quero é ser feliz / e andar tranquilamente na favela onde eu nasci / e poder me orgulhar / e ter a consciência que o pobre tem seu lugar". Exalta culturas da negritude na diáspora que sofrem, de diferentes maneiras, tentativas de criminalização e apropriação, como tem ocorrido sobretudo com o funk nos últimos anos. A prisão infundada do DJ Rennan da Penha, do Baile da Gaiola, um dos maiores do Rio de Janeiro, é um dos tantos exemplos de violação de direitos e perseguição a artistas e comunidades que promovem um complexo circuito sociocultural e econômico sustentado pelos bailes.

A criminalização do funk, a propósito, foi tema de audiência  pública na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados na última quinta-feira, 25 de abril, a partir de requerimento assinado por mim e pela deputada Talíria Petrone (PSOL/RJ). Seguimos resistindo! 

Com inteligência, trabalho e sagacidade, Djonga simboliza uma geração de jovens periféricos que conquistaram direitos antes inacessíveis e não estão dispostos a recuar com a chegada dos fascistas ao poder. Sabem que precisam se livrar da morte e vivem intensamente, buscando romper com as barreiras impostas por uma sociedade escandalosamente desigual. Muitos deles são os primeiros das suas famílias a acessar um curso superior. Batalham para pagar as contas e querem mais do que o mínimo para sobreviver. Estão atentos ao que acontece ao redor e dentro de si. Tentam educar suas emoções e revelar suas contradições e fragilidades, seus talentos e potenciais. 

Consciente do próprio brilho, o ladrão diz na faixa "Deus e o Diabo na Terra do Sol (open.spotify.com/5) ", em parceria com Filipe Ret: "foi nessas que eu fiz Minas / deixar de ser a terra do pão de queijo / e virar a terra do Djonga". 
Abram alas pro rei!

*Áurea Carolina é formada em ciências sociais pela UFMG, onde concluiu também mestrado em ciência política. Fez especialização em gênero e igualdade pela Universidade Autônoma de Barcelona. Atualmente, é deputada federal pelo PSOL-MG.

Fonte:https://www.nexojornal.com.br/Djonga-o-amor-próprio-de-uma-geração, em 29.04.19

Um comentário:

Adenise disse...

Pessoas como Djonga, da resistência,
devem ser divulgadas para fortalecer o movimento e sensibilizar as outras pessoas das injustiças sociais.

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