sábado, 21 de setembro de 2019

Morre Alê do Rosário, o jovem mestre da cultura quilombola

O Mestre da Cultura Quilombola não foi embora. Encantou-se. Deixou um grande legado de lutas por direitos do povo negro. 
"Quem não tem história não é ninguém".
"Tem senzala e casa grande nas igrejas, nas escolas, na política, na mídia, e principalmente no mercado de trabalho. O jeito é enfeitar uma e derrubar a outra".

Alessandro Borges de Araújo, o Alê do Rosário de Berilo, do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas, foi fazer festa de congada, de muita alegria no céu. Ele nasceu na comunidade quilombola do Cruzeiro, dia 9 de novembro de 1988. Faleceu, aos 30 anos de idade, nessa sexta-feira, dia 20 de setembro, devido a uma doença grave nos rins.

Alê do Rosário era o Capitão da Congada de Nossa Senhora do Rosário dos Quilombolas; Coordenador Municipal de Cultura de Berilo;  Diretor de Cultura da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais - N'Golo, Contra Mestre da Folia de Reis; Coordenador do Batuque Cultura Viva Berilo; fundador da COQUIVALE - Comissão das Comunidades Quilombolas do Médio Jequitinhonha; e um dos criadores dos Roteiros Turísticos da Rota Quilombolas, um projeto de Turismo Solidário nas comunidades de Berilo, Chapada do Norte e Minas Novas. Deixa uma marca de luta pela cultura popular, na defesa dos direitos das comunidades quilombolas no Vale do Jequitinhonha e em Minas Gerais.


Ele foi se juntar ao fanadeiro Mestre João de Deus, à rainha conga Eva de Misericórdia, de Chapada do Norte, aos tantos violeiros, tamborzeiros e congadeiros que fizeram da vida um canto de louvor, de amor, dança e canto, embora fossem açoitados pelos comandantes das senzalas e casas grandes, de antes e de agora, da escravidão disfarçada de hoje ou da escrachada de outrora.

Ainda adolescente, fez um levantamento dos cantos e ritmos de cultura popular de Berilo, percebendo que a Congada estava se enfraquecendo. Começou a juntar antigos congadeiros, formou e fortaleceu um grupo local. Tornou-se uma jovem liderança em um grupo quase todo de idosos. E incentivou a reciclagem, a formação de foliões mirins e jovens.
Gostava de puxar o canto, sempre repetido: "Ô mamãe, não deixa o seu filho chorar/ não deixa a coroa cair / não deixa a Congada acabar!". 

Fazendo intervenção no Encontro Canjerê, em Belo Horizonte, em 2017.

Alê tinha a consciência que seu povo (homens e mulheres pretas) precisava quebrar os grilhões de bolas de ferro que atavam suas vidas. E, desde menino, foi aprendendo os cantos e danças de libertação, de lazer e de devoção, tudo junto e misturado, nos ritos da religião católica europeia permitida, mas com a ousadia da religião africana inserida.

E é por isso que ele falava tanto em ancestralidade, nos deuses e reis negros de referência, lá nos primórdios da vida na Mãe África. Ou das lutas do povo daqui, e daqueles e daquelas que se destacaram como Zumbi, Dandara, Marielle... 


E ouviu dizer, na adolescência, que todo preto e preta era um quilombola. E isso foi tamborilando em sua cachola. Observava, acompanhava e participava da roda dos mais velhos, nas conversas de terreiro, nas folias de reis, nos batuques, nas congadas, nas rezas que eram lamentos do sofrimento, mas também de resistência, de um jeito de viver que  parecia não existir.

Aos 20 anos, participava da organização da I Conferência Regional de Igualdade Racial, realizada em Berilo, em 2009. E dali surgiu a proposta de resgatar a Festa do Rosário do Município.
Aos 20 e aos 30 anos.

Essa festa religiosa dos pretos e pretas existia há mais de 250 anos, mas um vigário português, de visão colonialista, fez questão de acabar e tentar colocar no seu lugar uma santa de devoção lusitana, Nossa Senhora de Fátima. E assim, esse padre isolou e ignorou a  Irmandade e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos tombada como patrimônio histórico nacional pelo IPHAN, em 1974. Com recursos arrecadados da venda a mercadores da fé, da madeira, de imaginárias e alfaias, castiçais, objetos, portas e janelas,  da Igreja do Rosário, o vigário português construiu outra igreja, à imagem de senhores de engenho.

Em outubro de 2009, Alê se juntou aos seus irmãos e irmãs, fazendo brilhar os olhos de esperança. As comunidades quilombolas desceram os morros. Os negros reocuparam os espaços públicos das ruas e praças de Berilo, fazendo cortejos até o local da antiga Igreja do Rosário. E Alê estava ali, à frente e no meio do cortejo. 


Na Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Berilo, em 2010. 

Era a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Berilo que ressurgia, o que seria o início de um levante das mais de 30 comunidades quilombolas do município. Desde 1981 não acontecia a festa. E ela ressurgia, depois de 28 anos.

E Alê se indignava com as palavras do padre, o português, que se referia aos negros como "filhos dos escravos". Escravo foi uma condição desumana vivida pelos seus ancestrais, pensava. Eram pretos e pretas, não adiantava negar. E tinham história.



Decidiu participar de vários espaços e criar outros para defender o direito do povo quilombola. Participou de eventos regionais e estaduais. Não perdia um encontro de congadeiros, as festas do Rosário de Minas Novas, Chapada do Norte, Francisco Badaró, Virgem da Lapa e Araçuaí.

Cantou músicas de louvor, no batuque, mas também de resistência: "Essa dança aqui é de preto só, se branco entrar cai no cipó!". Aprendeu que os irmãos brancos não eram todos opressores, poderiam ser parceiros. E aprendeu uma nova mensagem no mesmo canto:"Essa dança aqui é de preto só, se branco entrar fica mió!" .


E assim se destacou, nos Encontros do Canjerê, nos Seminários dos Povos Quilombolas. Sua voz forte e firme, sua personalidade de gente ousada, seu amor pela luta dos direitos quilombolas, o fizeram em pouco tempo referência nas organizações de representação quilombola.
E foi percebendo que a opressão do povo negro estava em todo lugar. Em um Encontro estadual, afirmou: 

"Tem senzala e casa grande nas igrejas, nas escolas, na política, na mídia, e principalmente no mercado de trabalho. O jeito é enfeitar uma e derrubar a outra".


Como trabalhador concursado da Prefeitura Municipal de Berilo,em 2011, deveria estar nos Serviços Gerais de limpeza. Porém, começou a ficar à disposição do setor de cultura. Mas, com um novo gestor, de 2013 a 2016, sua vida de ativista cultural foi podada ao ser designado para trabalhar com o caminhão de lixo. Não era autorizado a viajar e participar de eventos culturais. Se participava de eventos fora do município seus dias de trabalho eram cortados. Porém, não desistiu e insistia nas lutas de seu povo.
Através das redes sociais, divulgava suas idéias. Tanto escrevia quanto publicava textos instigantes.
E comentava sobre tudo.


"Só vai entender essa foto aqueles que sabem o que é sofrer e o quanto é importante políticas públicas para os pobres. Lula2018. Comunidade quilombolas de Quebra Bateia. Chapada do Norte-MG".

Em outro momento, em 2016: "Fui escolhido para representar o Vale do Jequitinhonha no GT que irá sistematizar e elaborar o Plano Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Quilombolas. Confesso que o desafio é grande, mas farei o melhor para colaborar com este marco histórico do nosso povo". Comentei que ele daria conta do recado e muito contribuiria com o documento. Respondeu: "Vai ser desafio! correr atrás do caminhão de lixo pensando em proposta..."



Em 2017, registrou :
"Luiz Inácio Lula da Silva do Brasil
Das minorias, dos excluídos
Dos negros e nordestinos, indígenas e Quilombolas
dos que sonham e que lutam.
Daqueles que hoje podem comer 04 refeições ao dia, mas que no passado só tinham aquilo que caia das mesas da elite.
Ganhamos o direito de ocupar os mesmos espaços dos ricos e privilegiados. Lula2018. 
Que comecem o mimimi!"



Dava recados curtos e diretos. Denunciava o preconceito e a intolerância. Questionava porque, no Brasil, o rei Thor, o Deus nórdico, é herói. E Ogum, o rei africano, era o diabo.

E se alegrava, com a chegada da Festa do Rosário:
Outubro Chegou
Tem cheiro de incenso
Tem cor de preto
e voz de tambor
Viva!!! 
out 2018".
No Festivale - Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, em Araçuaí, em 2014.

De janeiro de 2017 pra cá, esteve trabalhando no setor de cultura da Prefeitura de Berilo. E revigorou os serviços de cultura local. Além de participar e coordenar o grupo Berilo Cultura Viva, iniciou ações no Sobradão Abreu Vieira, prédio colonial de ex-proprietário de escravos, no século XVIII. Organizou uma Biblioteca e salas de exposição de artesanato. Promoveu reuniões, encontros e rodas de conversa. 
Criou o Memorial da Cultura Berilense


Realizou o I Encontro de Congadas, batuques, Folias e artesãos, no Sobradão Abreu Vieira , em 2017.

Por conta própria, Alê do Rosário vinha fazendo pesquisas sobre lideranças negras da história de Berilo, além de fazer poesias. Este Blog publicou alguns textos:


https://blogdobanu.blogspot.com/2017/10/poesia-de-um-congadeiro.html

Alessandro participou ativamente da pesquisa de campo do projeto "Quilombos do Vale do Jequitinhonha - Música e Memória" em que foram produzidos um livro com entrevistas e um rico acervo fotográfico. Além disso, o projeto resultou em 30 vídeos de curta duração e um portal na internet. 
Acesse o link: http://www.quilombosdojequitinhonha.com.br/

Alê foi pesquisador de campo como também foi um dos entrevistados.

Conheça opiniões do Alê do Rosário em trechos da entrevista, realizada em 2014.

"Imagina alguém sem identidade, ele não é ninguém. Uma pessoa sem história não é ninguém". 

Preconceito racial
"Respeita, porque existe lei que obriga a respeitar. Mas tem pessoas que, se pudessem tirar a gente do meio social, tiraria. Isso é visível aqui, a gente vê.”

“Nós temos, por exemplo, questão de famílias em Berilo que se acham donas do município, donas da cidade, que eu costumo chamar de os generais do século XXI”
Em reunião com a turma da COQUIVALE - Comissão das Comunidades Quilombolas do Médio Jequitinhonha, em 2016, em Francisco Badaró.

Preconceito é de fundo cultural 
“a questão não é mais da pele não, a questão hoje em dia é a questão da cultura do negro, que é outra luta que está começando a ser travada. Antes, porque ele era negro, agora a luta que começa a ser travada é que o preconceito hoje é cultural, não é mais racial. Não temos preconceito racial mais não”.


Alê do Rosário inspirou a criação de Gildásio Jardim, artista plástico popular, de Padre Paraíso, no Médio Jequitinhonha.

Ensino da História e cultura local 
“Para que a gente saiba que os Estados Unidos são a maior potência do mundo, isso deve ser aula de história ou geografia. Por que uma dessas aulas, que duram 50 minutos, por que uma dessas aulas no mês não pode ser sobre a cultura da comunidade daquela própria região?”

“Eu mesmo sugeri que nós deveríamos ter aula de cultura na escola, ter aula de história, geografia, português, mas uma delas tinha que ser aula de cultura da região, do local.”

Sobre dialeto regional
“Mas quando alguém está falando do modo de falar daqui, não está falando errado, não. É daquele jeito mesmo, é a maneira dele ser. É identidade, não é falta de estudo não.”

Confira aqui  a entrevista completa:
http://www.quilombosdojequitinhonha.com.br/assets/entrevista_alessandro.pdf

Aprendendo e reverenciando o Mestre Belisário de Berilo.

Os congados de Nossa Senhora do Rosário de Chapada do Norte, de São Benedito de Minas Novas, de Nossa Senhora do Rosário dos Quilombolas de Berilo, amigos e familiares prestaram emocionantes homenagens durante o sepultamento do Alê do Rosário.

Videos sobre a vida de quilombolas, presença e entrevistas com Alê do Rosário: 

https://www.youtube.com/watch?v=PFfP8SPe6o8
3 dias atrás - Vídeo enviado por Jornal Minas
O Vale do Jequitinhonha é considerado uma das mais pobres de Minas, mas tem nas tradições da ...· 

17 de out de 2017 - Vídeo enviado por Jornal Minas
Os quilombolas têm buscado novas alternativas de geração de renda. ... QUILOMBOS DO JEQUITINHONHA ...
17 de out de 2017 - Vídeo enviado por Jornal Minas
Combater a discriminação ainda é um dos grandes desafios nas comunidades quilombolas do médio ...



17 de out de 2017 - Vídeo enviado por Jornal Minas
A falta de oportunidades nos territórios de quilombo do Vale do Jequitinhonha tem feito a população ...




Um comentário:

Blog da Ane disse...

Banu. Amei sua publicação sobre o Alê do Rosário. Obrigada por registar fatos e momentos do Alê. Jamais os ideiais dele serão esquecidos. Abraços.

Postar um comentário