sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Para começar a entender a polêmica do azul e do rosa...


[segue textão sobre as polêmicas de gênero e o novo governo. tentei não me pronunciar, mas como boa estudante de gênero e diversidade que sou foi impossível não problematizar]

*O que Damares quis dizer com a metáfora das cores e como a esquerda ainda não entendeu nada*
- AZUL E ROSA vs MENINO E MENINA:
Nos últimos dias o vídeo que viralizou da atual ministra da mulher, família e direitos humanos, resultou em muita discussão nas redes sociais. Vi muitas postagens mega desconstruidonas sobre todo mundo ter o direito de usar a cor que quiser, sobre não sermos obrigadas a nada, sobre cor não ter gênero... 
No entanto, senti falta de uma problematização mais na raiz do porque a reprodução desse discurso binário é tão perigoso. Papéis de gêneros nos são impostos durante a nossa socialização: - família, escola, mídias: tv, jornais, jogos, filmes, desenhos...
Por trás do Menino veste azul:
Quando crianças, os homens são ensinados a se enquadrarem num padrão de masculinidade hegemônica: "a não agir que nem mulherzinha", não ser mariquinha, não chorar, não expressar sentimentos, não ser viadinho, jogar futebol, dirigir/construir carros, motos, casas, serem violentos e falar alto e grosso se necessário para impor sua vontade, demarcar território e usar as mulheres como objetos. 
A construção e manutenção dessa masculinidade hegemônica é tóxica e violenta tanto para os meninos, bem como para sociedade como um todo. É esse padrão do tornar-se homem que construiu e ainda vem construindo milhares de homens violentos, agressivos e com pouca ou quase nenhuma capacidade de entender e expressar sentimentos/emoções. 
Parte disso explica o tanto de homem (acredito eu ser grande maioria), com responsabilidade afetiva ZERO. Seja com suas companheiras/os e com a família no geral, principalmente com mães e filhos. 
Não é atoa que no Brasil tenhamos um índice gigantesco de filhos sem o nome dos pais na certidão de nascimento, processos de pais que não pagam pensão, dentre outros casos de abandono e omissão. 
Eu não poderia deixar de falar que essa masculinidade tóxica e hegemônica também é responsável por milhares de pessoas, sobretudo mulheres cis, trans e LGBTQIAP+ que são diariamente: assediadas, estupradas, espancadas e mortas. Fisicamente e simbolicamente.
Por trás da Menina veste rosa:
Quando crianças, nós mulheres somos ensinadas e pressionadas a nos encaixarmos num padrão de uma feminilidade hegemônica que nos torna escravas de um padrão do tornar-se mulher. Escravas de uma estética tanto no quesito aparência física: magras, altas, loiras, sem pêlos, sempre cheirosas, de unhas feitas, cabelos arrumados de preferência lisos, ou então com aquele cacho bem definido, sabe? Porque Deus me
 livre mulher descabelada, afinal. 



Como no quesito Padrão comportamental: donas de casa, mães que vivam em função da família e dos filhos, submissas, sempre dizendo sim, sorrindo e acenando ainda que constrangidas, cuidando da casa, limpando, passando, cozinhando, aceitando violência doméstica calada com medo e/ou por questão de sobrevivência como por exemplo: criar os filhos. Aquelas que de acordo com a bíblia edificam o lar. Em resumo, a famigerada mulher universal: bela, cis, hétero, branca, recatada e do lar.

Tal padronização da mulher ideal faz com que milhares de mulheres no mundo se submetam a toda uma indústria da beleza, que lucra rios de dinheiros com cosméticos, procedimentos cirúrgicos, estéticos, remédios e acessórios para que alcancemos o objetivo de estarmos sempre em busca de um padrão que a maioria de nós jamais chegará. Muitas de nós morrem nesse percurso do tentar chegar ao padrão, inclusive. Seja pela busca do padrão de beleza ideal do mercado ou seja pela busca do padrão comportamental, aceitando por vezes, na tentativa de edificar o lar, um marido violento que a espanca até a morte na frente dos filhos um dia que ele bebeu demais e "perdeu o controle".
*Os papéis de gênero e a luta anticapitalista*
A imposição dos papéis de gênero e a forma como essa imposição nos atravessa de maneira violenta, é só mais uma das faces de como o capitalismo se aproveita da divisão sexual do trabalho para se estruturar. 
E a esquerda que arrota pelos cantos que a fala de Damares é apenas uma cortina de fumaça para o pacote anti-povo do atual governo, não entendeu mesmo é NADA. Assim como o atual presidente, a ministra deixa mais que nítido em suas afirmações como esse governo pretende agir diante daqueles e daquelas que fogem a esse padrão da masculinidade e da feminilidade hegemônica. Como por exemplo as pessoas LGBTQ+ e não binárias. 
Não por acaso uma das primeiras medidas do atual governo foi uma medida provisória que retira a população LGBTQ+ da lista de políticas e diretrizes destinadas à promoção dos Direitos Humanos.
Esse governo tem lado, desde antes de sua eleição sempre deixou nítido que seu projeto seria contra uma parcela significativa da população que lutou e conquistou direitos nos últimos anos. 
O nosso erro enquanto esquerda talvez tenha sido nos afundar na nossa própria arrogância ao ponto de cada vez menos conseguir dialogar com a parcela da população mais explorada: as mulheres pretas, LGBTQ+, mães do campo e da cidade, que enxergam em nós uma esquerda incapaz de aprender com as demandas do povo. Uma esquerda que se diz popular mas só consegue pensar dentro da sua própria bolha e demoniza aquelas e aqueles que colocam como prioridade a luta por uma existência digna e sem violência.
Falar sobre papéis de gênero, divisão sexual do trabalho, racismo, LGBTQ+fobia, não é cortina de fumaça e nem é o que divide a esquerda. O que divide a esquerda é um bando de intelectual arrogante que nunca passou fome e muito menos teve sua existência ameaçada querendo ditar as regras de que a pauta econômica é prioritária e as pautas identitárias são secundárias. É sério mesmo isso gente? A essa altura do campeonato parece que cês não aprenderam nadinha mesmo... 
Afirmar que a pauta econômica está dissociada da luta das mulheres, antirracista e LGBTQ+, é simplesmente negar toda organização da classe nos últimos períodos. Afinal de contas cês falam tanto da necessidade de organizar a classe, mas acredito eu que cês precisam de verdade é COMPREENDER quem é a classe. E sem ter capacidade de dialogar com essas pessoas sobre as suas próprias realidades, ainda que essa realidade seja uma realidade considerada por muitos privilegiados secundária, nós estamos fadados a derrota.
O que a Ministra quis dizer com a sua declaração polemica foi: Quem não se encaixa no padrão HOMEM vs MULHER, não vai ter o direito de existir nessa sociedade. Ou seja, pessoas trans, LGBTQ+, que não estão dentro do padrão mulher que veste rosa: toda feminina, bela, recatada e do lar. E homem que veste azul: masculinidade hegemônica tóxica e violenta, homofóbicos, "machos alfas". As pessoas que não se encaixam nesse padrão, terão suas existências criminalizadas, invisibilizadas e perseguidas. Não por acaso o Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo! - isso é muito sério -
Nos dizem que temos escolha entre dois gênero, mas a verdade é que até isso é uma grande armadilha. A verdade é que não deveríamos ter que escolher entre dois gênero, até porque não existem só dois gêneros possíveis, a binaridade de gênero é uma construção social como tantas outras para reforçar os papéis de gênero, a divisão sexual do trabalho, a heterossexualidade compulsória e a tradicional família brasileira. (Se esse debate não é econômico, então quem não entendeu nada fui eu...)
Numa sociedade ideal livre das amarras do capitalismo, não deveríamos ter que escolher entre dois papéis de gênero tóxicos e violentos. Por isso a nossa luta deve ser pela emancipação do nosso povo desse sistema capitalista que se sustenta no sangue e suor derramado de quem mantém esse país com o fruto do seu trabalho. 
A classe trabalhadora que precisamos organizar para a construção de um poder popular é majoritariamente preta, feminina, LGBTQ+ e jovem. Sem essa compreensão, jamais avançaremos rumo a revolução que tanto almejamos. 
Falar de identidade de gênero, racismo, machismo e LGBTQ+fobia não é secundário. Secundário é a ignorância em arrotar que tais questões são menos relevantes que a pauta econômica como se esse debate não estivesse diretamente ligado a pauta econômica. 
Debater sobre as nossas existências é debater sobre como o capitalismo organiza as nossa relações. Sem isso, jamais seremos capazes de derrotar esse sistema e continuaremos a retroalimenta-lo mesmo quando acreditamos que estamos sendo antissistêmicos.
Por fim, a nossa tarefa enquanto esquerda é construir resistência a esse governo e tudo o que ele representa. 
Precisamos construir resistência ao lado de quem sempre esteve na luta. Pra isso, precisamos ter humildade em compreender o porquê falar sobre papéis de gênero é tão sensível para grande parte da população. Nesse sentido, precisamos parar de negar/desqualificar o debate sobre as identidades de gênero e politizar o debate apontando a raiz do problema, mas apontando também a perspectiva de superação dessa crise em que o capital nos meteu pelo caminho da luta e da auto organização popular. 
Só assim venceremos!
Fonte: Bruna Jacob, em sua página no Facebook. 
Bruna é natural de Itanhandu, no sul de Minas. Estuda Bacharelado em Gênero e Diversidade na UFBa - Universidade Federal da Bahia, em Salvador.

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