sexta-feira, 2 de junho de 2017

Viagem de uma nativa do Jequitinhonha ao Uruguai



Rosélia Ferreira*

Depois de tanta perambulação sola pero non solitária, constato que, definitivamente sinto enorme prazer em viajar assim. Constatação feita – e como a solidão permite devaneios – me pus a pensar de onde vem essa tendência. Sim, porque para além do modismo que percebo haver atualmente, as aventuras em sua própria companhia são, a meu ver, tendências adquiridas. E perscrutando a memória: essa tendência vem de longas viagens solitárias da menina, por horas deitada no chão da calçada de casa a observar o vôo majestoso dos urubus? 

Ou sentada na porta apreciando o verão das andorinhas que faziam do mercado sua pousada, até que a última delas se recolhia, num alarido de fazer inveja a qualquer orquestra sinfônica? Nas caminhadas solitárias para catar jatobá - criança tem cada gosto!!! – na Fazenda Veredas, já que na ocasião não tinha quem fizesse companhia na irresistível tarefa? 

Ou será que vem das raras ocasiões em que o Pai nos concedia a honra de contar suas aventuras por esse mundão de deus, e que me deixavam extasiada com os cenários imaginados? 
Ou ainda a leitura de aventuras de uma certa “Menina das Nuvens” – que afinal já até desisti de procurar em sebos, livrarias e editoras? - Contos de florestas encantadas, mal assombradas, jardins secretos? 

Viagemfobia que acometia possíveis companhias de estrada? Vá saber!! 

Não descarto nenhuma dessas possibilidades, não como origem, mas como manifestações de tendência. Que importância isso faz, afinal de contas? Bem, lendo coisa ou outra, ou ouvindo de pessoas, sobre as vantagens de viajar só, percebo que todos apontam como sendo principal, a possibilidade de conhecer pessoas, fazer novas amizades, conhecer alguém especial...quer dizer, deixar de estar só em outro lugar. Ok, acho tudo isto maravilhoso e não descarto nem renego as possibilidades nem o prazer quando isto acontece, ao contrário. 

Constato, porém, que minhas viagens solitárias nada têm a ver com expectativas desse tipo. Na verdade tenho muita facilidade em fazer contatos, como afiliada que sou ao signo da comunicação e das ideias - tenho inclusive como referência para homenagear meu círculo de relações uma deliciosa música do cantor e compositor mineiro Afonsinho que diz “a minha vida é cheia de gente e gente tem um tanto de coisas tão diferentes [...] cada um é cada um e eu sou mais feliz que não feliz”. 

Precisa dizer mais nada né? Pois bem, então preciso confessar que minhas viagens têm prazeres muito mais modestos, mas igualmente deliciosos. Confesso sem nenhuma culpa que me transformo numa voyer em tempo integral. Isso, é claro, não foi calculado, mas gostei muito à medida que foi acontecendo. Não ter alguém ao lado me permite, por exemplo, voltar toda a atenção para as pessoas que cruzam meu caminho, observar casais de namorados, crianças, velhos, mendigos; o modo como se comunicam, os gestos, as expressões que são particularidades da gente daquele lugar - chamou-me a atenção os beijos no rosto trocados pelos uruguaios de todas as idades e de ambos os sexos. Os uruguaios trocam beijos, ao contrário dos nossos homens, com seus efusivos apertos de mão e tapas nas costas, que parecem querer masculinizar os abraços. E minhas observações também me levaram a crer que são muito amáveis e muito polidos e sóbrios – imaginei divertida como as minhas sonoras gargalhadas brasileñas pareceriam verdadeiros atentados ao pudor por aqui, ou não? 

Prá saber, só tendo mesmo alguém ao lado né? e ainda que os negros são mais raros, bem como os índiodescendentes – só prá resumir a história, a maioria foi usada como bucha de canhão; é a versão mais corriqueira que encontrei. E o que ganho no meu voyeurismo? Um sentimento delicioso de pertencimento e empatia. Afinal, a despeito de todas as diferenças, aqueles corpos e expressões tão desiguais deixam entrever sentimentos, sensações e emoções simplesmente...humanos, como yo. 

Quantas histórias devem guardar aqueles corpos, aqueles olhos? Outro modo de conhecer pessoas, acho. E para além disso, qual acompanhante teria paciência em esperar alguém parar minutos a fio para decifrar uma placa de rua? Ou para fotografar folhas caídas no chão, como um tapete de bronze? 

Ou acompanhar um longo passeio em uma loja interessante, para comprar absolutamente nada?? (Um desses passeios foi ótimo, pois eu perambulava por uma loja linda de produtos orientais e começou a tocar um samba delicioso; espontaneamente ensaiei alguns passos e prá minha surpresa apareceu uma vendedora, que chamou outra, me pedindo prá mostrar como era...imagine se qualquer acompanhante me pegaria distraída a esse ponto?? Só risada!!!) 

E tem otras cositas, como por exemplo o direito de pedir uma informação, fazer o roteiro e simplesmente mudar o rumo porque uma certa cena chamou a atenção no meio do caminho – vai dizer cara pálida, que a mais apaixonada das companhias teria paciência para suportar tanta volubilidade? E a oportunidade de degustar cada sabor, por puro espaço na agenda, deixando o paladar mais agradecido que árvore do sertão quando chega a chuva? E têm ainda aquelas decisões politicamente incorretas para minhas atuais escolhas, como a de comprar um maço de cigarros e fumar sem censura nenhuma, simplesmente porque combina com vinho, frio e vento na cara!? Impagável!!! Ah! e fazer longa caminhada sob frio, neblina e vento num domingo e parar para ouvir um flautista que tocava maravilhosamente (aliás, os músicos de rua são um prazer à parte em Montevideo, e eu simplesmente assistia, sem pressa, aos violonistas, saxofonistas, percussionistas...maravilhosos!!!). 

E deu que neste domingo, talvez por escassez de ouvintes, o flautista, reconhecendo minha brasilidade, soltou “O que será”, de Chico Buarque. Não deu outra, formamos um dueto ali, sem nenhum ensaio! E de quebra ainda saiu Romaria, do Renato Teixeira. Plateia? Que nada! Quem além de um flautista pobre e uma canela de siriema cuja fartura é só de sonhos estaria tão à mercê de clima tão avesso, em plena tarde de domingo? Tendências promissoras, escolhas...fixo mesmo, só o endereço ocasional. 

E confesso que meu prazer seria maior se o flautista ainda soltasse um “Los gatos ya nacimos pobres pero ya nacimos libres.” 

Adelante!!!!

Rosélia Ferreira de Sousa é historiadora, Mestra na UFVJM, servidora da Superintendência Regional de Saúde ( Vale do Jequitinhonha), em Diamantina, no setor de Vigilância Sanitária. Natural de Coronel Murta, antiga Iraporé, no Médio Jequitinhonha, nordeste de Minas. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário