sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Minas Novas - Vale do Jequitinhonha: Médica cubana fala que pobres podem ficar sem assistência médica

Entrevista: Médica cubana esclarece que não é escrava, tem qualificação e fica triste por ter que deixar os pacientes.huDayneris Sandoval, médica da UBS de Ribeirão da Folha, em Minas Novas, no Vale do Jequitinhonha. Ela mora no povoado onde trabalha.                                                                                                                                                                                                                                                        "A principal causa que nos moveu até aqui se chama humanidade. Então, o coração chega a quebrar”, diz, emocionada, a médica cubana Dainerys  Sandoval, em entrevista ao Diário Causa Operária Online.

Seu sentimento de tristeza por ter de deixar o Brasil, com a saída de Cuba do programa Mais Médicos, não é por ela, mas pelo povo pobre brasileiro, cujas medidas do Bolsonaro irão afetar 28 milhões de pessoas que necessitam dos cuidados dos médicos cubanos. “A gente pensa mais nos pacientes”, lamenta.

Segundo ela, o presidente eleito impôs condições para a continuação do Mais Médicos sabendo que o governo cubano não iria aceitá-las, para jogar a culpa em Cuba. “Porque tem coisas que não têm preço: a dignidade, os valores, o respeito, o ser humano, o caráter. Essas são coisas que não se compra, e o governo cubano não iria aceitar.”
Dainerys chegou ao Brasil em 2017 para viver e trabalhar na cidade de Minas Novas, no distrito rural de Ribeirão da Folha, no Vale do Jequitinhonha, no nordeste de Minas Gerais. 
Nesse município, com um sistema de saúde extremamente precário, 90% da população depende do SUS e existem dez UBSs, todas com profissionais do Mais Médicos, e todos cubanos. Ela e seus compatriotas deixarão o Brasil a partir do próximo dia 25 de novembro.
Quando você chegou ao Brasil?
Eu cheguei ao Brasil em 10 de junho de 2017, como parte da colaboração médica cubana para o Programa Mais Médicos.
E como foi o processo para vir trabalhar no Brasil?
A primeira coisa que nós fazemos para vir ao Brasil é apresentar um currículo. Para você apresentar esse currículo, lógico, tem que ser médico formado, com mais de dois anos atuando na saúde pública em Cuba com experiência no trabalho de saúde preventiva e medicina geral integral, que é como se chama em Cuba o clínico geral.
Aí, apresentamos essa documentação para o consulado brasileiro em Cuba. Eles fazem uma seleção dos currículos. Os que forem aprovados passam então para a segunda etapa, que seria um curso de língua portuguesa e saúde pública do Brasil, que é ministrado por um professor de língua portuguesa brasileiro e um médico brasileiro que vai a Cuba para este curso. Ele demora 21 dias intensivos, com aulas das 7h às 19h. Após o curso, há as provas duplas: uma de protocolos de medicina brasileira e outra de língua portuguesa. A prova de língua portuguesa tem uma parte oral, ou seja, pode ser um monólogo, pode ser perguntas, e outra parte que é escrita. Na prova de medicina brasileira, ou seja, de protocolos de saúde brasileira, é uma prova escrita.
Logo após as provas, elas vão junto com o currículo novamente para o consulado do Brasil em Cuba, onde são analisadas pelos especialistas do tema e o médico é chamado se o consulado brasileiro aprovar o currículo e o resultado das provas.
O mediador entre os candidatos e o consulado brasileiro, em todo esse processo, é o Ministério de Colaboração Médica Cubana.
Então a seleção é rigorosa… Há muita concorrência?
Sim, o processo seletivo é mesmo muito rigoroso. Ou seja, não é assim banal, não é que eu sou médica e quero ir para o Brasil e pronto. Não, não é assim. É muito rigoroso, e tem concorrência sim, tem muita concorrência para participar.
Eu fico às vezes muito triste e revoltada quando muitas pessoas falam que duvidam de nossa capacidade, profissionalismo, também de nossa formação, com falta de respeito, sobretudo do presidente [o fascista Jair Bolsonaro]. E como um presidente não sabe como é um processo de seleção de um médico cubano para vir ao Brasil? Isso é inacreditável. Então o que eu acredito é que ele só faz para provocar, desvalorizar e desrespeitar os médicos cubanos e a medicina cubana por uma questão política. Então é muito triste.
Bolsonaro diz que os médicos cubanos no Brasil são quase como escravos do governo cubano. Pelas suas palavras, já se percebe que é mentira. Qual foi sua reação com as declarações dele sobre Cuba logo quando foi eleito?
Bom, a primeira reação que eu senti quando Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil foi de tristeza, uma imensa tristeza. E não por que eu sentisse uma admiração por algum outro partido político. Mas porque, durante toda a campanha, ele foi desrespeitando o ser humano de muitos jeitos. Depois ele foi se desculpando e falando que não queria ter dito aquilo ou isso ou aquilo outro.
Na verdade, não era um segredo para ninguém que ele seria uma pessoa desrespeitosa, até com o próprio ser humano, e seria uma pessoa preconceituosa. E eu nunca imaginei, na verdade, que o povo brasileiro fosse tomar a decisão de colocar no poder uma pessoa que não tem controle sobre si mesma, arrogante, desrespeitosa, fascista. Com ideias de tortura, e que ainda diz que ele é religioso e que “Deus acima de tudo”. Primeiramente, ele é um mentiroso, na minha opinião, um falso, e ainda assim o povo brasileiro — entre aspas — decide colocá-lo no poder.
Minha primeira reação foi de muita tristeza. E depois a de pensar o que aconteceria com o povo brasileiro, sobretudo aquelas pessoas mais pobres que precisam de projetos que as favoreçam. Então, é uma revolta. Na verdade, não tenho palavras pra expressar o que eu senti quando vi a notícia de que Jair Bolsonaro era o novo presidente do Brasil a partir do dia 1º de janeiro. É uma coisa que eu nem acreditava. E eu já falo: não porque eu tenha uma predileção por algum partido, porque na verdade eu não conheço os partidos no Brasil, eu seria incapaz de criticar. Só que, quando a pessoa não concorda ou não pensa igual aos demais, aí que é entra o respeito e é o que esse senhor não tem. Ele não tem respeito por nada nem por ninguém. Então, meu sentimento maior é de tristeza, e não por nós [médicos cubanos], mas pelo próprio povo brasileiro que vai precisar muito de pessoas que façam projetos para ajudá-los. Porque precisa de verdade.
Logo depois, eu pensei: “Gente, se ele, durante a campanha toda, uma das estratégias que usou para agradar a muitos médicos brasileiros” (não todos, porque conheço médicos brasileiros que apoiam os médicos cubano, que nos respeitam, eles sabem a qualidade do nosso serviço e da nossa formação). Mas aí entrou na minha cabeça e a primeira coisa que veio foi o programa Mais Médicos, “pelo menos a participação cubana vai embora, vai acabar. Porque se ele, na campanha já está falando mal dos médicos cubanos, está desacreditando, faltando com o respeito daquele tamanho (que não foi pouco, não, foi muita falta de respeito)”,eu pensei: “vai acabar”.
Só que minha dor não era tanto por mim, porque na verdade os médicos cubanos têm as portas abertas em Cuba primeiro, e depois no mundo todo, em muitos países do mundo. Aí, logicamente, pensei: “o programa vai acabar, pelo menos a parte cubana”. Porque, desde que ele manifestou que o programa teria novas condições, sobretudo para os cubanos, sabia que seriam condições pensadas para o governo cubano não aceitar. Porque tem coisas que não têm preço: a dignidade, os valores, o respeito, o ser humano, o caráter. Essas são coisas que não se compra, e o governo cubano não iria aceitar. E sempre falei: “vão ser medidas pensadas para o governo cubano não aceitar, e logo eles [os fascistas] poderem dizer que a culpa é do governo cubano e não do presidente eleito.”
Eu não me sinto escrava em momento nenhum do meu país. Eu aceitei, assinei um contrato em que eu sabia, quando chegasse ao Brasil, o salário que eu iria receber e eu queria mandar para Cuba e para que o dinheiro mandado para Cuba seria utilizado. Muitas pessoas não conhecem que Cuba há muito tempo é vítima de um embargo econômico aplicado pelo governo dos EUA só por ser um país socialista e porque eles não conseguiram colonizar o país. Esse embargo econômico proíbe Cuba de comprar produtos sob a patente dos EUA e, além disso, os EUA proíbem outros países de venderem esses produtos a Cuba. Esses produtos vão desde alimentação até medicamentos. Então é um problema sério. Se o governo cubano não pode comprar dos EUA (imagina só que haja algum remédio que seja só patenteado pelos EUA e Cuba não consegue comprar), o paciente pode morrer. É uma coisa muito grave que muitos não conhecem. Cuba precisa do dinheiro? Precisa. Nós damos o dinheiro conscientemente.
Muitos não entendem que nós sabemos para que se usa o dinheiro. Em Cuba, todo o mundo, sem importar a classe social, cor da pele, formação, sem importar absolutamente nada, tem saúde e educação de graça. Então, eu mando dinheiro pra Cuba? Mando. Mas eu sei para que o governo está utilizando, e eu sou feliz por isso. Precisa muito, porque para um país que tem que comprar tudo, é muito mais caro, porque não tem essa possibilidade econômica porque é um país pobre do terceiro mundo ainda. Precisa. Ninguém faz nada de graça. Talvez até deveriam ser negociados alguns termos do contrato, mas falar que o governo tem que mandar médicos para o Brasil, de graça, também não. E eu também não acho que eu seja explorada por meu país, em minha humilde opinião.
O povo queria o Lula, mas ele foi preso justamente para não se eleger. Justamente porque o povo quer programas sociais, porque precisa disso, como você disse. Como é a qualidade do sistema de saúde da cidade em que você trabalha? Qual foi a recepção da população e como foi a convivência com os pacientes?
Nesse momento, a saúde no meu município, como em quase todo o País, está passando por uma crise enorme que está atingindo a saúde de maneira bem mais forte do que outros setores. O meu município se viu muito afetado este ano, ao ponto de quase fechar o único hospital que temos aqui, por uma causa especificamente econômica, porque o governo não repassou a verba que tinha que passar para o município para os gastos com a saúde. 90% da população, nesse município, é dependente do SUS. Nosso município conta com dez Unidades Básicas de Saúde, delas quatro ficam na zona urbana e as outras seis ficam na zona rural. Todas ocupadas por médicos do programa Mais Médicos, e todos cubanos.
A saúde, de verdade, nesse momento, está em uma crise. Só para você ter uma ideia, ontem (14), quando passamos a notícia para o secretário de Saúde, ele nos olhos com os olhos cheio de lágrimas e falou: “Eu não gostei dessa notícia, estou muito triste e só penso no que eu vou fazer com a população da zona rural do nosso município, que é toda coberta por médicos cubanos.”
A recepção, pelos pacientes do município, foi ótima. O acolhimento foi maravilhoso. Pessoas muito amorosas, respeitosas, e sempre assombradas de como um médico cubano trata o paciente. “Bom dia”, um exame físico completo, medicina humanizada. Eles não cansam de repetir para você: “Nossa, ela é a médica, ela cumprimenta todo o mundo e trata bem todo o mundo.” Isso é uma coisa que me conforta. E eu gosto muito, muito mesmo. Minha convivência foi maravilhosa, não tenho nada que falar do povo brasileiro, sobretudo das pessoas com as que eu convivi. Eu só posso agradecê-los pelo carinho, tal qual eles me agradecem pelo respeito que eu tenho por eles. Porque simplesmente eles são seres humanos, para mim todo o mundo é igual. Então, foi muito bom, a convivência aqui foi maravilhosa.
Eu moro no mesmo lugar onde trabalho, bem distante do município. Já tive que fazer parto no posto, sem condição nenhuma. Então os pacientes veem o esforço que a gente faz e te respeitam por isso.
A história que você acaba de contar é muito emocionante.
Eles ficam assombrados quando a gente se encontra na rua e eu pergunto: “Você já está melhor?”
Como o povo do seu município e também os outros médicos cubanos reagiram com a notícia de que terão de partir?
Muito triste. A maioria dos médicos cubanos que eu conheço ficaram muito tristes. Sobretudo muito tristes pelos pacientes que vamos deixar aqui. Muitos acham que nós viemos ao Brasil só pela questão econômica. Lógico, também tem a ver com a questão econômica, porque a economia do nosso país, pelo que já expliquei, é um pouco difícil. Mas a principal causa que nos moveu até aqui se chama humanidade. Então, o coração chega a quebrar. Eu já recebi cartas de pessoas falando que não acreditam no que está acontecendo, o que vai ser deles sem nós. Então você fica com o coração na mão.
Para a minha enfermeira é muito triste, muito difícil. Mas a gente pensa mais nos pacientes, pois nós temos trabalho em Cuba e em muitos outros países. Então quem vai ficar desprovido são os pacientes. Me emociono quando eles vêm me ver, já chorei muito de ontem pra hoje com eles.
Percebi que você está mesmo com a voz embargada. Eu também estou emocionado. Você e seus companheiros já têm data de partida?
Começamos a sair a partir do dia 25 deste mês, de forma organizada.
O que você pretende fazer quando voltar a Cuba?
Quero fazer pediatria (rostinho com olhos de coração).
E depois pretende embarcar em alguma missão médica para outro país?
Na verdade estarei a disposição. Onde estiverem precisando de médicos para ajudar, aí estaremos. Mas sempre respeitando nossos ideais. Pois os valores não se compra.
Entrevista publicada no jornal da Causa Operária, no link
https://www.causaoperaria.org.br/entrevista-medica-cubana-denuncia-bolsonaro-e-lamenta-ter-de-deixar-os-pacientes-o-coracao-chega-a-quebrar/

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