A reação em cadeia das disciplinas sobre o golpe de 2016
A tentativa de censura à UnB leva universidades a oferecer outros cursos sobre o tema.
A universidade reverbera a visão majoritária no Brasil: o impeachment foi golpe
O ministro da Educação, Mendonça Filho, conseguiu transformar um caso isolado em uma reação em cadeia. Em 22 de fevereiro, ele dedicou parte de seu expediente para publicar mensagens em sua conta no Twitter, onde combatia o curso “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, recém-criado pelo Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Brasília.
Ao longo da tarde, foram 16 mensagens, entre elas a de que havia “indicativos claros de uso da universidade pública para proselitismo político e ideológico do PT”. O discurso ganhou destaque na mídia, quando o ministro declarou que a investida iria adiante e anunciou a decisão de acionar, entre outros, o Ministério Público Federal para “a apuração de improbidade administrativa por parte dos responsáveis pela criação da disciplina”.
A investida de Mendonça Filho contra a grade de aulas surgiu do seu conceito pessoal, a partir do cargo público que exerce no governo e de dentro do grupo político que assumiu o poder, de que a destituição da ex-presidenta Dilma Rousseff do cargo para o qual foi eleita não caracteriza um golpe de Estado, e que, portanto, o tema não poderia ser discutido em sala de aula, como proposto na ementa. Em suas palavras, “não há base científica para a criação do curso, assim como a aderência do tema à realidade brasileira”.
Não é o que pensa a massiva maioria dos cientistas políticos e a comunidade acadêmica. Para o coordenador do curso na UnB, Luiz Felipe Miguel, a se entender que foi um golpe, não a mera substituição da presidenta, o debate é fundamental para compreender a natureza, a profundidade e a abrangência das transformações em curso no País. Além de obrigação dos estudos contemporâneos na ciência social e política.
Leia também:
A reação da academia à investida de Mendonça Filho contra a coordenação do curso foi imediata e reacendeu o debate sobre a autonomia universitária e a liberdade de cátedra. Universidades de todo o Brasil passaram a anunciar a oferta da extensão, cujo motivo da obra é o golpe de 2016, com nome e ementas similares àquela proposta por Miguel.
A primeira a anunciar foi a Universidade Estadual de Campinas, e pelo menos outras 31 instituições confirmaram o curso em suas grades para este semestre. Entre elas, as federais da Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro, além da Universidade de São Paulo e da Universidade Estadual Paulista.
Para o professor, a compreensão de que houve golpe de Estado em 2016 é amplamente majoritária na sociedade, dentro e fora das universidades, inclusive em campos populares que divergem politicamente entre si, e não uma extravagância de um pesquisador, como o ministro tentou fazer parecer. “Existem vozes que dizem que não houve ruptura democrática. Na academia são vozes minoritárias. Quem assiste ao GloboNews vai ouvir essas vozes, mas isso não é representativo. Fica claro que vetar a palavra golpe busca aprofundar esse processo de ruptura.”
Embora o ministro tenha anunciado a ofensiva, até agora não existe nenhuma representação contra a coordenação do curso na UnB, e a tendência é de que ela não saia do papel. Desde a reação das universidades e da sociedade em geral, Mendonça Filho minimizou o discurso.
Deputado federal licenciado, o demista comunicou que vai deixar o ministério em abril, para concorrer às eleições deste ano. “O ônus do recuo ficará para o seu sucessor. Ele jogou a polêmica para a plateia, o que, para nós, era seu objetivo principal. O caso vai morrer [na instância jurídica] porque não tem nenhuma base”, diz Luiz Felipe Miguel.
O debate sobre a liberdade de pensamento, ideia seminal das universidades, foi reativado a partir do movimento de resistência da academia contra o ensaio de censura. O ministro é acusado de ferir a autonomia universitária e, nesse caso em especial, a liberdade de cátedra, que é o direito de a universidade, a partir dos seus colegiados, decidir o que e como ensinar, independentemente dos governos e de quem está no poder. Foi na Constituição de 1988, nos artigos 205, 206 e 207, que a autonomia didático-científica apareceu pela primeira vez com força de lei no Brasil.
Leia também:
Segundo o professor Luiz Araújo, especialista em educação, agredir o pensamento crítico é uma tendência histórica dos grupos hegemônicos. “Eles não querem que nada mude, ou seja, que não se questionem coisas que parecem eternas. E os governos incomodam-se com a crítica que as universidades lhes podem fazer. A indústria também se comporta assim.”
Para o coordenador do curso originário da querela, a atitude do ministro está alinhada a uma ideia de que quem fala em golpe no Brasil é petista, fecundando a dualidade política a serviço dos grupos ultraconservadores.
“O que me incomoda é que eu teria o direito de ser militante e professor ao mesmo tempo, mas não sou. Tentaram me emparedar numa posição partidária que nunca foi minha, o que não significa que não tenho posicionamento político. Se tivessem se dado ao trabalho de ler alguma coisa que já escrevi, saberiam que sou bastante crítico às limitações do PT.”
O movimento das universidades provou que a academia está disposta a resistir à exposição de condições que comprometem sua própria existência, e uma vitória contra a censura e o autoritarismo. As aulas na UnB começaram como programado na segunda-feira 5 e, ao que tudo indica, o golpe de 2016 será extensivamente debatido nas universidades.
Fonte: Carta Capital, por Carolina Scorce — publicado 15/03/2018 00h15, última modificação 14/03/2018 16h49
Nenhum comentário:
Postar um comentário