FOI A GROSELHA...
Reginauro Silva
Ontem aconteceu uma tragédia que eu jamais imaginaria que seria superada. E será, ao longo desta narrativa.
Chovera o dia todo em Almenara, com o Rio Jequitinhonha ameaçando invadir outra vez nossa casinha de quatro cômodos e oito pessoas, na Rua Hermano de Souza.
Meu único par de sapatos Vulcabrás ficou todo ensopado, o que valeu uma surra com doze escovadas em cada mão e umas lambadas de marmelo nas costas. Coisa pouca, que o lombo e as palmas já estavam acostumados com esses ensinamentos domésticos.
Minha mãe, dona Santa Laura, findo o corriqueiro castigo, colocou os sapatos para secar por sobre a chapa do fogão de lenha e foi ver se achava uns cobertores na casa de Dr. Hélio, pois o frio era iminente.
Quando voltou, um dos sapatos tinha caído dentro do borralho e estava todo estorricado. Não sei por que, mas levei outra surra. Fui dormir com o rabo quente. E mais sabido.
Como não poderia faltar à aula de jeito algum, pois era Dia das Crianças e haveria uma festa com muitas guloseimas e suco de groselha, amarrei um pano velho no pé esquerdo e calcei o pé de sapato que se salvara do incêndio pós-tempestade.
Claro, era proibido entrar no Grupo Escolar Conde D’Afonso Celso descalço, e muito menos com chinelo de dedo.
Dona Laura se orgulhou de ter um filho tão inteligente e até sugeriu que eu fosse mancando de uma não ocorrida contusão provocada pela perseguição às galinhas do quintal entulhado de lama de porco e fezes variadas, inclusive as nossas. Só não tinha gripe suína.
Depois de muitos coitadinhos pelo caminho, entrei na fila da escola, rezei o Pai Nosso e a Ave Maria com a turma e me postei na primeira fila do pátio, onde se concentrava a comemoração.
Perdi a corrida do ovo na colher, mas ganhei a do saco, pois podia correr normalmente, sem ninguém perceber o machucado de mentirinha.
O prêmio foi uma montanha de salgados, doces e uns copões de alumínio cheios de k-suco pelando de quente, numa quantidade tamanha de enorme (na visão do menino esquálido), que nem sei como coube na pança.
Encerrada a primeira parte do Dia das Crianças, fomos chamados para copiar o dever de casa do dia seguinte, que voltaria à normalidade.
Foi aí que adveio uma dor de barriga tão intensa, dona Magela, que as tripas se retorciam, o suor descia pela testa, as mãos se fizeram geladas e os pés parece que adormeceram.
Quase sem voz, sussurrei lá do meio da sala:
- Dona Marli, dona Marli.
- O que é, Reginauro?
- Eu posso ir lá na casinha?
- Não, copie primeiro o dever de casa.
- Mas...
- Silêncio! Fique quieto aí, Reginauro!
Atenção! Escrever 100 vezes: “Qual é o sujeito pretérito da frase...”
- Dona Marli, posso ir...
- Não!
Insisti mais umas três ou quatro vezes.
- Não! Já disse: Não!
O estômago embrulhou-se por dentro, uma avalanche precipitou-se rumo ao chão, o esfíncter parece que se soltou feito carnegão vindo a furo, as vísceras latejaram que nem gato engasgado. Prendi a respiração, suspirei sofregamente, engoli em seco.
- Dona Mar...
Nem deu tempo de ouvir outro não. Um alívio fofo prenunciou a borralheira que se fez vapor e impregnou todos os milésimos de milímetro de cada poro da sala, até sopitar pelo teto e varrer o chão. Um murmúrio de nojo transmudou a fisionomia de todos os colegas, tanto fedor que acabou convencendo dona Marli.
- Pode ir, Reginauro Silva!
Era tarde.Com a calça curta breada por dentro, a lavagem já descendo pelas pernas, saí a galope, ganhando os corredores, o pátio, os fundos da escola, a cerca de arame farpado que me deixou uma cicatriz no lado direito do rosto até hoje visível.
Só quando alcancei a manga de Maria Sapateiro é que me senti livre de tanta vergonha e da censura pública.
Parei de correr para tomar fôlego. E procurar o rumo de casa.
Rodeei a cidade inteira, passando por mangas e capões, veredas e pedregulhos, até chegar em casa, já de noitinha, todo fedido.
E levar outra surra, desta vez aplicada por Seu Rebeldino, fã número 1 do pai de Michael Jackson.
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