Frei Betto escreve sobre Chico Buarque que fez, neste 19 de junho, 76
anos. Um texto poético como o próprio Chico. Fala do homem sensível,
inteligente, cidadão, poeta, escritor, ativista político, personagem
histórico. Conclui, depois de tentar decifrar o Chico de todos os
brasileiros: "Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi
Chico."
Retrato do Artista Quando Adulto
Frei Betto*
Poesia em forma de pessoa, Chico Buarque encarna os requisitos da obra
poética: emoção, economia de palavras, agudo senso estético. Dentro dele faz
muito barulho. Mas quem o conhece sabe que ele é quase silêncio, disfarçado de
tímido, como quem observa o mundo espantado com o milagre da vida.
Entre amigos, o vozeirão grave atropela as sílabas, como se temesse a gagueira
inexistente, e Chico fala de tudo e de todos, sem poupar irreverência. Entre
estranhos, os olhos verdes brilham enigmáticos, luzeiros inefáveis, a boca
tapa a fervura d’alma, o sorriso, entre maroto e contido, exibe as teclas de
piano entre o sim e o não.
Diante do olhar canibal dos fãs, Chico quase olha para trás, convencido de que
não é com ele. Dane-se a cabeça idolatrada, mas ele se sabe de barro e sopro,
exilado dessa imagem que a admiração alheia, avara, projeta na imaginação
fantasiosa de quem, um dia, numa frase musical, viu-se arrebatado e
identificado, no amor ou na dor, no sentimento indelével que o poeta captou,
fraseou e cantou.
Francisco Buarque de Hollanda teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos de
1960. Seresteiro precoce, cercado de livros e cordas na rua Buri, em São
Paulo, trocou a régua e o compasso, da Faculdade de Arquitetura, pela toada
intimista da Bossa Nova, trazida ao lar pelo cunhado João Gilberto. Todavia,
neste carioca branco de alma negra, o morro impregnou-se mais forte que a
praia. Desconfio de que, no fundo, Chico lamenta não ter nascido na Estação
Primeira de Mangueira, com todo o talento que Deus pôs nos pés e na magia dos
brasileiros que fazem do futebol a arte de dançar em torno de uma bola.
Em 1964, a ditadura ameaçou os padres dominicanos de expulsão do Brasil.
Prejudicados pela conjuntura política, apelamos aos amigos. No teatro
Paramount, em São Paulo, promovemos o espetáculo beneficente Avanço, no qual
Chico Buarque, cantor de plateias estudantis, fez sua estreia para o grande
público. Havia também uns baianos muito novos, o irmão de Bethânia do Carcará,
um ex-bancário chamado Caetano, todo timidez, e um amigo dele, ex-funcionário
da Gessy-Lever, um tal de Gilberto Gil…
Passeata dos 100 mil, em 26 de junho de 1968, foi a maior manifestação
popular contra a Ditadura Militar. Na foto, os então jovens Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Chico Buarque, entre muitos artistas e intelectuais.
Nasciam ali os trovadores que iriam desencantar a ditadura, embora forçados ao
exílio e submetidos à censura. Deram-se as mãos na Passeata dos 100 Mil, em
torno da igreja da Candelária, no Rio e, mais tarde, Roda Viva, de Chico,
comprovou que teatro é espelho. Mirem-se nas mulheres de Atenas. Rostos
macabros não gostaram de se ver refletidos. Quebraram o espelho, assim como os
algozes de Antonio Maria acreditavam que jornalistas escrevem com as mãos…
Chico foi para a Europa, no autoexílio inevitável. Fez espetáculos em favor
dos exilados e deu às suas letras um tom mais profético que romântico. Aqui é
o seu lugar e, de retorno ao Brasil, ousou quebrar o cálice e fazer ouvir a
sua voz, convencido de que amanhã será outro dia. Com Vinicius, foi para São
Bernardo do Campo apoiar os metalúrgicos que, liderados por Luiz Inácio Lula
da Silva, teimavam em sonhar um Brasil diferente.
Filho de famílias que há 100 anos conspiram em favor da democracia, Chico não
é um militante, desses que exibem carteirinha de partido e atestado de
tendência ideológica. Nem “militonto”, que pula de palco em palco acreditando
que, com o seu violão, vai salvar a pátria e acabar com a fome no Brasil. Mas
é um cidadão da utopia, impregnado da virtude da indignação. Esteta, tem a
medida das coisas. Nessa arenga nacional, conhece exatamente o seu canto e,
quando faz noite, sua voz suave, de timbre acentuado e agudo, quase feminino,
traduz paixões e feridas, rupturas e arroubos. Porque canta o que sentimos sem
encontrarmos palavras, expressão agônica de nossos espíritos atordoados ou
enamorados. E tece em letras os estorvos que impedem a vida de ser a arte de
sonhar acordado.
Chico é ele e suas mulheres – Silvia, Helena e Luiza, e as netas e os netos.
Ele é feito de detalhes – o que, aliás, importa em nossas vidas. Sua
casa é um espaço democrático, onde candidatos, desde que progressistas, expõem
suas ideias e acolhem críticas e sugestões dos artistas. Na Gávea, vi seu pai
fazer 76 anos e cantar Sassaricando em latim.
Para Chico, o tempo não passou na janela. Ele se fez geração. Na arte e no
palco, transmuta-se em Carolina, numa dessas mulheres que só dizem sim,
seresteiro, poeta e cantador, olhos nos olhos, ele se chama Mané e dobra a
Carioca, sobe a Frei Caneca e se manda pra Tijuca na contramão. Nunca esteve à
toa na vida e, cantando coisas de amor, alia-se à esperança dessa gente
sofrida que quer despedir-se da dor.
Larápio rastaquera, pai paulista, avô pernambucano, bisavô mineiro e tataravô
baiano, ele gostaria de ser o mais exímio jogador de sinuca. Falso cantor,
Chico é apenas um artista brasileiro.
Saibam que poetas, como os cegos, podem ver na escuridão. Nessas tortuosas
trilhas, sofre de pânico cênico, admira Fidel Castro e, viciado em futebol,
jamais se “americanizou”. Quando no Rio, cidade submersa, os escafandristas e
sábios decifrarem o eco de suas cantigas, amores serão sempre amáveis e
cantores, duráveis. Porque a alma brasileira vai reter Chico para sempre.
Se do barro o Criador fez alguém com tanto amor, foi Chico.
*Frei Betto é escritor, assessor de movimentos populares. Autor de mais de
60 livros, com artigos, poesias, culinária, política, religião, comunicação,
biografia.
Leia mais sobre Chico Buarque:
Nenhum comentário:
Postar um comentário