segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

As mortes em Paraisópolis são tragédias anunciadas

A catástrofe de domingo (01.12) é um desdobramento óbvio da 
prática repressiva e constante da polícia.
Nabil Bonduki*


Publicado na Folha de S. Paulo, às 23:37 h.


A catástrofe de Paraisópolis, que terminou com nove jovens mortos e sete feridos, pisoteados em tumulto provocado pela ação realizada pela Polícia Militar para reprimir um baile funk, é uma tragédia anunciada, que tem dois elementos que, combinados geram uma mistura explosiva.  
De um lado, a crescente violência policial contra a população pobre, negra e periférica, que vem sendo estimulada pelos governos federal e estadual.
As mortes na favela se relacionam, não exclusivamente, com a autorização velada que a polícia vem recebendo das autoridades para cometer atos de violência sem risco de punição (excludente de ilicitude).
De outro, a tragédia se vincula à improvisação e precariedade com que é organizada a maior parte dos bailes funk em favelas e bairros periféricos, reunindo multidões sem nenhum esquema de segurança, gerando revolta compreensível nos moradores afetados e constantes reclamações à PM.
Moradores da favela Paraisópolis, protestam usando cartazes contra a ação da PM durante o baile Funk na madrugada deste domingo(1)


Moradores da favela Paraisópolis, protestam usando cartazes contra a ação da PM durante o baile Funk na madrugada deste domingo(01.12) - Marlene Bergamo/Folhapress
O funk é uma manifestação autêntica, cuja relevância para a cultura popular é indiscutível. Sofre, como sofreram as manifestações culturais e religiosas da população afro-brasileira (o samba, o candomblé, a capoeira, etc.), a rejeição de certos setores da sociedade, que tentam criminalizá-lo. Já se tentou na Câmara Municipal aprovar projetos de lei nesse sentido que, felizmente, foram rejeitados.
Mas criminalização do funk e a ação repressiva contra ele tem a adesão de muitos cidadãos, pois os bailes geram vários tipos de incômodos. Organizados por comerciantes ou grupos locais nas ruas, geralmente estreitas, de bairros pobres, o chamado “fluxo”, não tem qualquer regramento de horário ou de nível de ruído nem planejamento espacial que garanta os direitos dos moradores do entorno, que ficam privados da mobilidade e do silencio necessário para o descanso nas noites e finais de semana.
Protestos de moradores contra a ação violenta de Polícia Militar.
Por outro lado, os bailes acabam sendo uma oportunidade para que o crime organizado, aproveitando-se da grande presença de jovens e adolescentes, utilizem o espaço para o tráfico de drogas e outras atividades ilícitas.
O funk, no entanto, não se confunde com isso. Trata-se de uma manifestação cultural que tem enorme adesão dos jovens nos bairros populares, ainda mais frente a ausência de outras alternativas de cultura e de lazer. Os conflitos e problemas daí decorrentes devem ser enfrentados com políticas públicas e não com repressão.
Não é o que tem ocorrido. Acionada por moradores ou agindo por conta própria, a PM tem atuado com crescente violência contra os bailes funk, constantemente interrompidos por bombas, tiros e agressões contra jovens, eventos que normalmente não ganham as manchetes da imprensa.
O Baile da 17, como é chamado o “fluxo” de Paraisópolis, triste palco dos acontecimentos da noite passada, por exemplo, já sofreu 45 ações de repressão apenas nesse ano, segundo a própria PM.
A catástrofe desse domingo, portanto, não é um fato isolado, mas um desdobramento óbvio dessa prática repressiva constante e ineficiente.
As alegações de que policiais perseguiam jovens que roubaram uma moto são apenas uma desculpa para tentar justificar o crime que foi cometido. De qualquer forma, a polícia não poderia, a pretexto de perseguir pequenos criminosos, gerar uma tragédia de tais dimensões.  
Em 2015 e 2016, a prefeitura de São Paulo promoveu ações voltadas para a promoção de bailes funk em condições adequadas, que seria o início de enfrentamento sério e consequente da questão, se não tivessem sido interrompidas em 2017.
De modo articulado com grupos locais, foram organizados bailes funk em locais adequados, afastados das áreas residenciais, em várias regiões da cidade.
Nesses eventos, a municipalidade fornecia a infraestrutura necessária, garantindo segurança para os participantes e tranquilidade para os moradores, respeitando a diversidade cultural e o protagonismo dos artistas locais. Oferecendo alternativas para os jovens, gradativamente, esses eventos poderiam substituir ou esvaziar os bailes improvisados que se realizam nas ruas, sem requerer repressão.     
Enquanto não se implementarem mais políticas públicas voltadas para a juventude periférica e tiver continuidade a lógica da violência policial sem responsabilização dos agentes, o risco de novas tragédias como a dessa madrugada estará sempre presente.

* Nabil Bonduki *Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.
O baile funk onde morreram nove pessoas pisoteadas, mais conhecido pela sigla “DZ7”, é um dos maiores de São Paulo e reúne entre 3.000 e 5.000 pessoas —incluindo gente de municípios vizinhos— por dia ao longo da rua Ernest Renan, em Paraisópolis, e em seu entorno, em São Paulo.
O baile, que começa à noite e continua até a manhã do dia seguinte, funciona com iniciativas descentralizadas —carros e caixas de som, comerciantes e aglomerações de pessoas ao longo das ruas.  Diferentemente dos maiores bailes do Rio de Janeiro, o DZ7 não tem um organizador nem apresentações de DJs ou MCs. 

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