sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Lula Livre: Bilhete para um operário

O jornalista e cronista Lourenço Diaféria escreveu uma crônica, publicada em setembro de 1980, cinco meses após Lula ser preso pelo DOPS durante a ditadura militar.

É um texto bem atual que mostra a perseguição política a Lula, há mais de 40 anos.     "Bilhete pra um operário" foi publicado em 1980, em homenagem ao novo líder operário que desafiou a ditadura militar e o grande empresariado nacional.

Bilhete para um operário*
Lourenço Diaféria**

Pegaram um dia um operário e disseram-lhe:
Senta-te no banco dos réus.

És acusado de haveres nascido com sonhos na cabeça. 


És acusado de teres os cabelos encaracolados. 

És acusado de teres bigodes vastos, negros, provocativos.

És acusado de teres alguns pedaços de dedos a menos que o comum dos mortais, podados pelas engrenagens das máquinas.

És acusado de ficares pelas esquinas conversando em voz baixa com amigos enquanto a luz dos postes te ilumina o suor do rosto. 

És acusado de terem te visto no bar dando gargalhadas.

És acusado de tua casa ter um pequeno jardim com grama e flores.

És acusado de conheceres a sinfonia das sirenes das fábricas anunciando a aurora do primeiro turno. 

És acusado de seres reconhecido na portaria e todos te cumprimentarem, e te baterem levemente nas costas com alegria, e te dizerem: olá, meu chapa.

És acusado de inventares um partido que não é o único, mas não se confunde com siglas e teorias de alfarrábios envelhecidos.

És acusado de fazeres discursos de improviso com vigor e garra que nascem do fundo das vísceras do espírito.

"Lula Livre!"Criação de Gildásio Jardim, artista plástico de Padre Paraíso, 
no Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas.

És acusado de não seres magro nem raquítico como teus irmãos deviam ser.

És acusado de jogares baralho e dares dores de cabeça aos homens sérios deste país.

És acusado de usares gravata em vez de macacão, vestindo-te com roupas só permissíveis no enterro do melhor amigo.

És acusado de freqüentar reuniões e discutires com sábios e iluminados sem pedir licença nem apresentar diploma.

És acusado de te haverem visto com ministros, criaturas importantes, e não te ocorrer submeter-se a elas.

És acusado de não teres te colocado no lugar cavado para o oprimido. 


És acusado de haveres gritado com toda a força de teus pulmões fuliginosos.

És acusado de teres filhos bonitos e uma mulher doce, que devia ser feia e talhada a foice.

És acusado de não seres rapaz comportado, meigo, gentil, acetinado.

És acusado de conheceres a prensa, e não te afugentar o ronco que ela faz na madrugada.

És acusado de quereres a pátria livre, e livre, também, o coração e os sentimentos do homem.

És acusado de rezares e de pôr a boca no trombone quando todos se calam e descrêem de Deus e dos homens.

És acusado de teres o desplante de ser líder num país desnaturado onde quem levanta a fronte é triturado.

És acusado de haveres perdido a paciência de esperar pelo futuro que não chega nunca.

És acusado de usares sapatos 42, de couro, quando o normal é sandália havaiana.

És acusado de romperes as cadeias invisíveis que amarram teus braços peludos e tuas mãos penadas.

És acusado de atraíres os operários com tua voz, teu berro, teu silêncio, teu olhar, tua dor, tua ânsia, teu mistério, e saberes contar, sorrindo, tristes histórias recolhidas em barracos e cômodos-e-cozinhas.

És acusado de estares em pé, quando devias estar de bruços, de borco, exangue e vencido.

És acusado de não seres o que queriam que tu fosses.

Meu caro operário sentado no banco dos réus, por favor, recebe este recado:

Se existir mesmo essa senhora difusa e vaga a que chamam Justiça, confia nela.

Não creio que essa matrona seja cega.


(*) Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo, no dia 15/09/1980. 

**Lourenço Diaféria  foi um contista, cronista e jornalista brasileiro. Paulistano, nasceu em 1933 e morreu na Paulicéia Desvirada, com 75 anos, em 16.09.2008. 


Trabalhou na antiga Folha da Manhã, atual Folha de S. Paulo, a partir de 1956.Começou a publicar crônica, em 1964, permanecendo no jornal até 1977, quando foi preso pela Ditadura Militar devido ao conteúdo da crônica Herói; Morto. Nós., considerada ofensiva às Forças Armadas. Ficou vários meses preso.

crônica comentava o heroísmo do sargento Sílvio Delmar Hollenbach, que pulou em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um menino. A criança se salvou, mas o militar morreu, vencido pela voracidade dos animais.

A crônica também citava o Duque de Caxias, o patrono do Exército, lembrando o estado de abandono de sua estátua no centro da capital de São Paulo, próximo à Estação da Luz.
Depois, levou suas crônicas para vários jornais de São Paulo, além de quatro emissoras de rádio e para a Rede Globo.

Católico, escreveu A Caminhada da Luz, livro sobre Dom Paulo Evaristo Arns, a quem admirava. Apaixonado por futebol, escreveu muitas crônicas sobre o esporte popular, principalmente sobre o Corinthians, sua paixão.
Publicou diversos livros de crônicas.

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