Observar os discursos dos principais atores políticos (instituições, partidos, academia...) em momentos de profunda crise política e institucional é um exercício interessante.
A discussão sobre democracia talvez seja o tema mais instigante nessas circunstâncias.
Fugindo do academicismo, vamos apresentar alguns elementos desse debate, analisando especificamente o “caso brasileiro”:
1. Desde seu nascedouro, na Grécia antiga, a democracia nunca foi um “governo do povo”. Trata-se de um sistema de hierarquização do poder. (Leia mais
aqui ). Lá, o cidadão, aquele que participava ativamente do governo, era o homem livre. Mulheres, escravos, estrangeiros, ou seja, a maioria popular estava fora de quaisquer processos decisórios.
2. Na modernidade, a democracia foi retomada, principalmente no Ocidente. Como um canto de sereia, apresentava uma beleza estonteante e escondia um novo vício que podemos chamar de corrupção: trata-se da democracia representativa. A ideia ingênua segundo a qual os eleitos (e, portanto, aqueles que têm condições para assumir o controle do governo) representam os interesses do conjunto da população. Qualquer analista minimamente honesto, que não esteja apegado a dogmas procedimentais - muito caros principalmente em nossa academia colonial, salvo exceções -, sabe muito bem que a representação é um instrumento fundamental para a exclusão política de boa parcela dos cidadãos, em quaisquer democracias. É um sistema de privilegia uma classe (os detentores do capital e seus capatazes) em detrimento de outras. Esquemas fraudulentos como o poder do dinheiro, a ação arbitrária das elites partidárias, o papel desempenhado pela “justiça” eleitoral, ou regras eleitorais (como o coeficiente eleitoral, no nosso caso) são instrumentos que excluem da participação efetiva dos processos eleitorais e, por consequência, dos processos políticos, a maioria dos cidadãos, limitados a meros eleitores submetidos e manipulados a tais regras discricionárias.
3. A partir de certo momento, notadamente no século passado, a democracia ocidental passou a ser sinônimo de democracia capitalista. E criou-se um consenso segundo o qual não há salvação fora desse sistema: um modo de governança submetido aos interesses de quem domina os meios de produção e, mais recentemente, vassalo dos donos do sistema financeiro global. Portanto, somente dentro dos cânones determinados pelos capitalistas é possível se falar em democracia. Uma série de medidas foram tomadas para doutrinar os cidadãos a acreditarem que a única possibilidade de felicidade e realização é dentro de sistemas democráticos capitalistas, não obstante a pornográfica desigualdade social que assola as democracias e a formação de castas dentro desses sistemas: 1% concentrando quase toda a riqueza e determinando os rumos da política (note-se que o burocrata mais importante de qualquer governo democrático é o ministro da fazenda ou da economia); militares e juízes tutelando o sistema; classe média reacionária minoritária, defendo seus privilégios...
4. Com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais evidente que a palavra democracia não se aplicava, de fato, a regimes dominados pelos interesses do capital - que produzem abissais desigualdades, exclusões e múltiplas formas de violências seletivas. Mesmo em momentos de ampliação de direitos trabalhistas, como ocorreu com o chamado “estado de bem-estar social”, a democracia capitalista mostrava sua farsa: não era o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, como exclamara Abraham Lincoln. Assim, a partir de meados do século passado, começou-se a adjetivar o termo para mantê-lo palatável. Expressões como “semidemocracia” ou “democracia de baixa intensidade” disfarçam a evidente incompatibilidade entre o que se prega (um regime de igualdade de direitos e deveres) e o que se observa na “vida como ela é”: um regime segregacionista: múltiplas formas de segregação (renda, etnia, idade, gênero...).
5. Muitos estufam o peito e dizem: “em se tratando de regimes políticos, a democracia é o melhor”. Repare que, geralmente, essa frase é dita por aqueles que estão incluídos de direito e de fato nas democracias capitalistas.
Lula venceu os indignos
6. No caso brasileiro, nunca vivemos uma democracia de fato. Somente, lapsos de uma democracia procedimental. Se considerarmos o período desde a invasão europeia, no século XV, temos 10% do tempo de vivência da democracia formal no país.
7. Com o golpe mais recente, o de 2016, ficou cristalino que o último grnde pacto entre elites, celebrado em 1979 com a lei da anistia e o acordão posterior, a chamada redemocratização, consolidaram a falácia democrática brasileira. Nos últimos 30, desde a Constituição de 1988, apesar de avanços incrementais (reconhecidamente importantes), a democracia de fato se estendeu, somente, para a classe média. Para cerca de 70% da população, a democracia continuou sendo um conto da carochinha. Mas, desde então, a classe média - ofendida em seus direitos civis e políticos durante a ditadura -, dormiu em berço esplêndido com o pacto celebrado em 1988, enquanto concessões eram destinadas ao andar de baixo. E como bons cristãos, todos dormíamos sem culpa, com a “consciência tranquila” (essa categoria individual e não necessariamente ética), mesmo sabendo do genocídio que continuava a dizimar pretos e pobres; as condições de semiescravidão de boa parte do mundo do trabalho; a consolidação de castas dentro do aparato estatal; a destruição de ecossistemas com projetos neodesenvolvimentistas; as barganhas sem escrúpulos para permitir governança aos nossos “representantes” eleitos; a transformação de cidadãos em consumidores ávidos pelo sucesso individual e sem noção de pertença nacional... E poderíamos listar, aqui, um rosário de outras mazelas históricas que continuaram minando nossa pseudodemocracia. Nenhuma reforma estrutural, nos sistemas político, econômico, judiciário, tributário, midiático, educacional, agrário... foi feita. Enquanto isso, as elites predatórias associadas ao ultraliberalismo internacional trataram de, mais uma vez (como antes, na proclamação da república; ou nas décadas de 30, 40... e em 1964) escancarar o que muitos insistem em negar: o Brasil sempre foi um arremedo republicano: oligárquico, excludente, violento e elitista.
8. Fico pasmo ao ler e ver discursos de partidos e líderes do chamado “campo progressista”, mais especificamente da esquerda, que continuam a dizer, em pleno 2019, que “a democracia brasileira corre perigo”, mesmo depois da assunção ao governo de um grupo político claramente autoritário, um necrogoverno (leia mais
aqui ), sem nenhum compromisso com o intitulado “estado democrático de direito” (essa expressão que esconde o caráter elitista da nossa democracia, porque poucos acessam, de fato, tal “estado democrático”). Sem contar o
impeachment fraudulento e as eleições de 2018 totalmente corrompidas (aos olhos da justiça que, aqui, sempre teve um lado para chamar de seu).
9. O discurso da legalidade democrática vindo de castas do judiciário, da caserna, de setores da academia ou de golpistas históricos como da mídia empresarial é sobejamente conhecido e só serve para tamponar nossa realidade quase feudal. Mas, ouvir essa argumentação justamente daqueles que se dizem os defensores do povo e de uma democracia verdadeira é algo vergonhoso.
10. O fato é que não temos no Brasil um campo político revolucionário e competente para propor e implementar um projeto de país onde as reformas estruturais que enfrentem e superem o nosso passado escravocrata, autoritário, elitista e violento sejam assumidas e, a partir de tais reformas, possa se vislumbrar a construção de uma Nação, onde a dignidade humana, de fato para além de direito, alcance a todos, e não somente 30% da população.
Por isso, essa quadra histórica se caracteriza pela desorientação: não dos autoritários, perversos e violentos; mas, dos democratas. Mas, “deixemos o pessimismo para dias melhores”. Em frente...
Doutor em Ciências Sociais.
Professor da PUC Minas, onde leciona, atualmente, nos cursos de Filosofia, Psicologia e de Serviço Social; é pesquisador e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas (Nesp); coordenador da Comissão da Verdade em Minas Gerais (2017-2018); conselheiro titular do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais; associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; integrante da Rede de Assessores do Centro Nacional de Fé e Política Dom Helder Câmara (organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil); integrante da Comissão Pastoral de Direitos Humanos da Arquidiocese de Belo Horizonte; membro do Fórum Mineiro de Direitos Humanos e do Comitê Mineiro de Educação em Direitos Humanos. É articulista de jornais e revistas e blogueiro em sites e portais na Internet.
Foi presidente da Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura do Estado de Minas Gerais (2001 - 2005); membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais (1999 - 2004); pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública - Crisp/UFMG (2001 - 2011) e pesquisador do Observatório das Metrópoles (2011-2013). Realiza estudos, pesquisas e tem prática profissional nas áreas de políticas públicas (segurança pública, preso e sistema prisional); política (formação à cidadania, eleições e estudos legislativos) e movimentos eclesiais. Atua, principalmente, nos seguintes temas: direitos humanos, cidadania, justiça, controle externo da atividade policial, segurança pública, violência e criminalidade, participação social na gestão pública, monitoramento do poder legislativo, ação dos movimentos sociais (foco: movimentos eclesiais).
Fonte: www.brasil247.com
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