Na fase mais difícil de uma crise de
identidade que pode custar sua sobrevivência surgiu uma luz no fim do túnel do
Partido dos Trabalhadores.
Em conversas discretas entre
dirigentes graduados e lideranças históricas, cresce a convicção de que a
situação tornou-se tão dramática e desafiadora que não há alternativa fora dos
fundamentos do próprio PT. Desse ponto de vista, cresce o argumento de que a
bancada parlamentar deve ceder à vontade expressa da militância do
partido e recusar toda ideia de uma acordo para votar em Rodrigo Maia em troca
de uma posição na mesa da Câmara de Deputados.
O ponto de central desse argumento é
fácil de compreender. A partir da noção frequentemente esquecida de que se
trata de um partido que nasceu da luta social antes de eleger deputados e
senadores, organizou lideres do povo antes de se tornar Poder, o PT precisa
demonstrar -- sim, há motivos para dúvidas! -- quem é que manda em sua
orientação, quem define suas prioridades e participa de suas alianças.
Este é o ponto em discussão. Antes de
permitir que uma divergência, por mais profunda que seja, se transforme numa
briga de rua e disputa irreconciliável, produzindo danos irreversíveis e
traumas sem cura, é preciso resolver esta questão anterior, que sempre teve um
lugar importante nas decisões do partido. Trata-se de decidir -- e isso é
política em maior grau -- quem manda no PT, quem define seus núcleos de poder e
toma as decisões mais importantes. Estamos falando da democracia interna, tão
importante e tão esquecida, que precisa ser revigorada.
A partir daí, o debate permite
colocar as diferenças em seu devido lugar, evitando simplificações que só
ajudam a aprofundar uma divisão desnecessária, que interessa aos adversários
dos trabalhadores, que necessitam destruir o PT para implantar um Estado mínimo
incompatível com organizações de classe estruturadas. Um partido dividido, com
militantes desmotivados e desmoralizados constitui o adversário ideal
para projetos socialmente criminosos de destruição da Previdência Social e
desmonte da CLT. Também tornará mais complicada qualquer tentativa de resistir
aos absurdos da Emenda Constitucional que limita os gastos públicos. Nesta
conjuntura, a responsabilidade da militância é enorme, seu espaço não pode ser
minimizado e ela tem consciência disso.
Heterogêneo e diversificado desde seu
nascimento, o PT cresceu e se tornou um partido capaz de vencer quatro eleições
presidenciais porque foi capaz de responder a cada mudança de conjuntura sem
abrir mão de princípios, fazendo um governo que, apesar de limites e erros
cometidos, marcou a história do país. Seu passado contem ensinamentos que não
podem ser desprezados.
A experiência recomenda que é preciso
deixar de lado toda formula pronta e acabada para uma boa ação política. Os
erros e desastres estão sempre à espreita. O cretinismo parlamentar pode levar
ao abandono da população a própria sorte, enquanto deputados e senadores se perdem
em futricas e armações que nada significam para as grandes maiores. Já a
doença infantil do esquerdismo pode produzir o mesmo resultado, mesmo que
empregue uma retórica diferente. Da mesma forma, os métodos destrutivos de
discussão, uma herança dos piores partidos de esquerda, devem ser evitados e
mesmo denunciados, pois nada substitui o debate aberto sobre cada momento e
cada opção a ser tomada. É o que procuro fazer aqui.
Convém recordar que há lideranças
leais e comprometidas com a luta da maioria dos brasileiros dos dois lados.
Na história do PT poucas decisões
foram tão polêmicas -- e tão criticadas, na época -- como a recusa de apoiar a
chapa Tancredo Neves-José Sarney no Colégio Eleitoral. A bancada parlamentar
estava de um lado e o partido, de outro, como sabemos todos. Consumado um
impasse de imensa gravidade, a direção do PT convidou os dissidentes a pegar o
boné e ir para casa -- forma delicada de expulsão. Olhando a história de trás
para a frente, examinando as opções possíveis a cada momento, não há dúvida que
foi uma das decisões mais acertadas em toda trajetória do partido.
As surpreendentes guinadas ocorridas
nos anos seguintes, como a morte inesperada de Tancredo, a Constituinte, o
Plano Cruzado, confirmaram, mais de uma vez, que política é como nuvem -- uma
hora está de um jeito, depois fica diferente. O saldo mostrou que o partido só
ganhou em recusar as pressões para aderir ao projeto conservador da Nova República,
preferindo manter-se fiel ao compromisso com a defesa intransigente pelas
Diretas, expressão da soberania popular, afastando-se até de lideranças
respeitáveis do palanque na maior campanha popular de nossa história.
Essa postura firme está na raiz na
gigantesca autoridade que o partido adquiriu nos anos seguintes, seja como o
oposição direta a Sarney, seja como uma bancada capaz de exibir, na
Constituinte, uma influência muito maior do que a aritmética de deputados
eleitos. Também deixou o caminho aberto para um segundo lugar no primeiro turno
da eleição presidencial de 1989 e a partir daí a história política do país
passou a ser contada de outra forma, pois o PT e Lula se tornaram sinônimo dos
adversários "de tudo isso que está aí", tornando inevitável sua
chegada ao Planalto, cedo ou tarde.
Essa atitude de não impediu uma
atuação parlamentar respeitável e influente. Para ficar num exemplo. José
Genoíno foi um dos deputados mais influentes de Brasília por mais de duas
décadas, numa trajetória que incluiu a travessia de vários desertos
parlamentares. É possível ainda encontrar as digitais de petistas em diversas
iniciativas positivas permitidas pela relação de forças do plenário. Nem por
isso é possível exagerar -- o problema é este, exagerar -- nas ilusões a
respeito dessa atuação.
Na Constituinte, onde a questão
social ocupou um lugar importante, o PT teve uma atuação essencial em vários
avanços obtidos -- sem ocupar um único lugar na mesa. O partido bem que tentou,
negociou, fez acordos -- e foi traído duas vezes. O mineiro Paulo Delgado foi
negociado para ocupar uma suplência mas, na hora da decisão, os aliados que
haviam recebido os votos do PT mudaram de lado e lhe sonegaram o voto. O mesmo
ocorreu com a paulista Irma Passoni, que seria titular -- e acabou traída do
mesmo modo.
O partido não tinha nenhum lugar na
mesa em 1995, na chegada de Fernando Henrique no Planalto, e em 2000, quando
Aécio Neves e Inocêncio de Oliveira disputavam a presidência da Câmara, Aloizio
Mercadante fez uma contra-candidatura simbólica.
Estes episódios ajudam a lembrar que
o Congresso sempre será um terreno hostil a quem mantém compromissos com os
trabalhadores e com a democracia. A história do PT não foi produto da
sorte nem de publicitários mais ou menos talentosos -- embora se possa achar
que estes fatores tenham sido de grande valia em determinadas situações.
Foi o resultado possível de políticas
que se modificaram com o tempo mas não perderam as próprias referências.
Mesmo em momentos de fragilidade o partido deu preferência aos movimentos
sociais como sua proteína básica. A incompreensão dessa realidade está por trás
da grande crise que o partido enfrenta, cuja origem se encontra no abandono de
seus compromissos históricos quando o governo do PT e o partido se associaram
num ajuste que nada tinha a ver com os interesses que explicam sua existência.
Uma postura de tolerância com a corrupção que faz parte da política brasileira
desde que Cabral aportou em Porto Seguro fez o resto.
É nesta situação difícil, de beira de
abismo, que o partido chega a janeiro de 2017. Os argumentos foram apresentados
e debatidos pelas partes. Está claro que a ideia de fazer um acordo com Rodrigo
Maia simplesmente não representa a visão da maioria dos militantes.
O saldo que é a militância está
irritada e desconfiada. Com a experiência acumulada em duas e até três décadas
de luta, em muitos casos na experiência única de assumir funções de relevo no
governo e na estrutura do estado, no Congresso, nas prefeituras, reuniu
conhecimento e aprendizado. Não tem o frescor saudável da juventude -- cuja
ausência é sintoma de muita coisa -- mas possui a memória insubstituível da
experiência vivida. Formou uma opinião a respeito das tramas e maquinações
parlamentares. Quer seu partido de volta e tem todo direito de ser ouvida. Como
se viu em todas as campanhas eleitorais, nas horas decisivas a história lhe
pertence.
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