segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

15 anos da ASA: a luta pela dignidade no semiárido

A Articulação no Semi-Árido (ASA) mostrou como é possível executar políticas públicas numa região dominada há séculos pela indústria da seca.
Najar Tubino
ASA
A Articulação Semiárido Brasileiro comemorou a data no dia 26 de novembro com mobilizações em 11 centros urbanos e três capitais. Os representantes de mais de três mil organizações ligadas à ASA tem muito a comemorar, assim como a população de 22 milhões de pessoas que convivem com a seca em nove estados. Foram mais de 800 mil cisternas de consumo humano e mais de 72 mil tecnologias para água usada na criação de animais e na produção agrícola. Muito mais do que isso, a ASA mostrou como é possível executar políticas públicas numa região de difícil acesso, e dominada há séculos pela indústria da seca, que nada mais é do que um conluio entre políticos, governantes e empresários, cujo principal objetivo é desviar o dinheiro público.
 
O que as organizações realizaram nestes últimos 15 anos foi justamente estancar esse processo predatório. E mais: num momento dramático para todo o nordeste, que vive o ciclo da maior seca em 100 anos. Desde o início do ano passado mais de mil municípios estão em estado de emergência, por absoluta falta de água. No Ceará, dos 184 municípios, 176 estão em emergência. A pior situação é no Piauí, com 202 municípios. O diretor da Defesa Civil do estado, Jerry Heber, diz que só tem condições de abastecer 94 municípios.
 
Quarto ano de seca
 
A Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (FUNCEME) registrou queda de 28% nas chuvas que ocorreram entre janeiro e maio – com média de 508 mm. As chuvas em todo o semiárido variam de 220 mm a 800 mm. O problema é que muitas regiões estão caminhando para o quarto ano seguido de seca. Como explica o presidente da FUNCEME, Eduardo Sávio Martins:
 
“- Para 2015, as perspectivas não são boas, há 80% de chance de ocorrer El Niño no segundo semestre de 2014. Os cenários já apontam que o fenômeno já se estabelece. A grande dúvida é sobre sua intensidade e como ele vai impactar na geração de escoamento superficial, no aporte dos reservatórios e na agricultura de sequeiro”.
 
Para fechar o quadro climático: os dados do ONS, sobre a capacidade dos reservatórios das usinas hidrelétricas não são nada animadores. O rio São Francisco é compartilhado por cinco hidrelétricas – Paulo Afonso, Itaparica, Moxotó, Xingó e Sobradinho. Esta última tem o maior lago da América Latina com mais de 300 km2, área equivalente a Baía de Guanabara. Porém, Sobradinho está com 15.55% da sua capacidade (medida em oito de dezembro), e por reter um volume assombroso de água, ela regula a vazão do rio São Francisco.
 
Sem rio não há o que transpor
 
Qual é a situação do chamado rio da integração nacional? Péssima. Em novembro, a nascente histórica na Serra da Canastra, no município de São Roque de Minas, secou e assim permaneceu por dois meses. Os sinais de alerta sobre o assoreamento, destruição de matas ciliares, esgoto sendo jogado diretamente e exploração excessiva da irrigação dos perímetros irrigados, são expostos pelas redes de televisão e na internet. É uma situação complicada e muito difícil, mesmo com obras de revitalização. O tamanho do rio – 2,8 mil km -, além do número de municípios que abrangem a bacia hidrográfica – 504, com 13 milhões de habitantes -, tudo isso, agrava o problema.
 
Um fato é notório: sem rio, não há o que transpor. E o São Francisco carrega as suas águas no cerrado, justamente a região mais detonada pelo agronegócio, incluindo o oeste baiano, que é considerado uma caixa d’água. O próprio Ministério do Meio Ambiente em seus relatórios sobre as ações realizadas para a revitalização enfrentam problemas de toda ordem – da dificuldade em se realizar licitações, do interesse e dos conflitos entre governos estaduais e municipais, além “do longo tempo para o processo de sensibilização, mobilização e capacitação dos beneficiários diretos das ações – populações tradicionais, assentados, pescadores”.


Uma das inúmeras auditorias do Tribunal de Contas da União registra que “as iniciativas de recuperação e controle dos processos erosivos encontram-se dispersos e representam parcela modesta dos recursos empregados” e também aponta para a reduzida participação das comunidades locais e da realização de estudos sobre o manejo do semiárido. Nunca esquecendo que 43% da área do semiárido – quase um milhão de km2 – é susceptível à desertificação. Para piorar: projeto de mais duas hidrelétricas no rio São Francisco.
 
Duas novas usinas
 
As usinas de Riacho Seco (240MW) em Curaçá (BA) e Pedra Branca (320MW) em Orocó (PE), segundo as informações do Comitê da Bacia do São Francisco para suprir a energia dos eixos Norte e Leste da transposição. O resultado disso é conhecido: 12 mil pessoas afetadas, em seis comunidades tradicionais – Abaré, Curaçá e Juazeiro, na Bahia e Petrolina, Santa Maria da Boa Vista, Lagoa Grande, Orocó e Cabrobó, em Pernambuco.
 
“- Se as represas saírem do papel inundarão áreas de diversas comunidades e assentamentos, prejudicando a vida de milhares de pessoas para gerar 560MW, que poderiam ser supridos com a energia eólica”, comenta Almacks Luiz, do Comitê da Bacia do São Francisco.
 
Milhões superfaturados
 
A realidade do povo do semiárido ainda precisa conviver com ações de órgãos federais, dominados pela indústria da seca há décadas, como é o caso do DNOCS – o Departamento Nacional de Obras contra a Seca-, cujos dirigentes são indicados atualmente pelo deputado federal em final de mandato, Henrique Alves – um sobrinho dele é o coordenador no RN. É uma autarquia federal que executa projetos milionários do PAVC, como são as barragens para perímetros de irrigação e consumo humano. Li o relatório da Corregedoria da União de mais de 200 páginas sobre obras fiscalizadas até 2011. A CGU diz que “tem apontado de forma recorrente o descumprimento da legislação, irregularidades graves e a adoção de procedimentos que não se coadunam com a boa e regular aplicação de recursos públicos. Processos de dispensa de licitação, de ausência de fundamentação de situação emergencial e a realização indevida de pregão na forma empresarial” – neste caso, marcam em Brasília.
 
Vou citar um exemplo banal, comparado aos milhões superfaturados em cerca de R$2,88 bilhões aplicados em várias obras. A Consultoria Hydros, como diz o nome, deveria assessorar uma determinada obra com a apresentação de relatórios mensais, trimestrais e semestrais. Não cumpria a tarefa e ainda copiava os relatórios das empresas supervisoras, incluindo os erros de pontuação.
 
Transformar a vida de cidadãos
 
Para registrar: o DNOCS atua em 10 estados, e conta em seu patrimônio com 327 barragens – acumulação de quase 30 bilhões de m3-, 39 perímetros irrigados, 14 estações de piscicultura e dois centros de pesquisa. Diz a CGU: “nos últimos anos tem se observado a baixa capacidade operacional da autarquia, agravada pela falta de reposição suficiente do quadro pessoal e de capacitação adequada de seu corpo técnico, bem como estruturas gerenciais deficientes, o que atinge a Administração Central e suas coordenadorias estaduais”.
 
É neste contexto que a ASA conseguiu mobilizar milhares de pessoas nestes últimos anos, resolvendo o problema imediato do consumo humano para mais de quatro milhões de pessoas. Numa conversa com Naidison Baptista de Quintella, o coordenador da ASA, em Juazeiro, durante o III ENA, perguntei sobre a dificuldade de contatar as comunidades. Ele respondeu: nós temos que selecionar e a comunidade decidir onde será instalada a cisterna e isso nos dá a oportunidade de entrar na casa dos interessados. O processo é muito eficiente. Conversar, discutir, capacitar e construir. Transformar agricultores e agricultoras em pedreiros e pedreiras, mas principalmente colocar tudo isso relacionado à produção de alimento sem veneno e no contexto da convivência com o semiárido.
 
Um exemplo recente, relatado pelo Instituto da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), recentemente, no projeto P1 2 – uma terra duas águas, financiado pelo BNDES. A ação ocorreu no início do mês em Chorrochó, na região de Juazeiro, onde participaram 50 famílias.
 
“- Os participantes avaliam a mobilização e animação para o cadastro, a construção de tecnologias, os intercâmbios de experiência, cursos realizados ao longo do projeto que durou 11 meses. Também avaliaram a rapidez e a qualidade na realização de todas as etapas de construção de uma cisterna calçadão que atenderá a 18 famílias”.
 
Imagem de gado morte e terra rachada
 
Nos municípios de Chorrochó, Sento Sé e Uauá as ações do IRPAA, uma das organizações da ASA, atenderam 320 famílias, somente no município de Chorrochó foram 25 comunidades envolvidas. Eles realizaram: duas capacitações de pedreiros, quatro cursos de gestão de água para produção de alimento, curso de manejo de irrigação, um intercâmbio de experiências, três sistematizações no boletim Candeeiro, a implementação de 105 tecnologias, 11 barreiras trincheiras, 60 cisternas de enxurrada e 34 cisternas calçadão. Assim que funciona a execução de uma política pública que dá certo e por isso mesmo não é notícia na mídia nacional.
 
A imagem do semiárido tem que ser carcaça de boi – que nem é o animal símbolo do semiárido- e terra rachada. A história da vida real, de milhares de pessoas organizadas, conscientes das agruras do ambiente natural e que mostraram competência em executar obras com dinheiro público, nunca será notícia na mídia dos clãs familiares do Brasil. ATÉ 2016, A ASA implantará mais de cinco mil cisternas nas escolas da zona rural do semiárido – 870 já funcionam. E está construindo a Política Nacional de Comunicação, com encontros já realizados em vários estados, deverá culminar em janeiro com eventos no Rio Grande do Norte e Bahia.  

Fonte: www.cartamaior.com.br

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