Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda aos milhões e cai na miséria
Mais de 30 milhões deixam classificação; perspectiva para 2021 é de mais
perda de renda nas classes D e E
Folha de S. Paulo, 24.abr.2021
às 23h15
SÃO PAULO
Maior novidade da paisagem econômica brasileira no início deste século,
a chamada classe C está sendo empurrada rapidamente de volta às classes D e E.
Ou, o que é pior, indo direto para a miséria pelas
consequências da Covid-19 e da desorganização das políticas de mitigação da
pandemia do governo Jair Bolsonaro (sem partido).
Pesquisas de diferentes órgãos revelam não só que dezenas de milhões de
brasileiros retrocedem a situações mais precárias desde o ano passado mas que
suas vidas podem continuar piorando em 2021.
Enquanto classes mais favorecidas começam a estabilizar a renda ou a
obter ganhos, as classes D e E —cada vez mais numerosas— devem amargar nova queda de quase 15% em seus rendimentos neste
ano.
Isso não só aumentará a desigualdade social brasileira mas
retardará a recuperação econômica.
Moradores do
Jardim Julieta, uma ocupação na zona norte de São Paulo que se formou em 2020,
fazem fila para receber sopa distribuída por uma ONG - Lalo de Almeirda/Folhapress
Mais pobre, a gigantesca população de baixa renda consumirá menos, exigindo menos investimentos e contratações de novos empregados pelo setor produtivo.
Com a paralisação de muitas atividades em 2020 e a interrupção do
auxílio emergencial em dezembro —só retomado em abril, com valores bem
menores—, milhões de brasileiros estão despencando diretamente da classe C para
a miséria.
Em 2019, antes da pandemia, o Brasil tinha cerca de 24 milhões de pessoas
na pobreza extrema, ou 11% da população, vivendo com menos de R$ 246 ao mês.
Agora, são 35 milhões, ou 16% do total, segundo a FGV Social com base nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios
Contínua e Covid-19.
Entre esses novos participantes da pobreza extrema, muitos não se
encaixam no clássico perfil do miserável brasileiro —oriundo de famílias muito
pobres, desestruturadas e de baixíssima escolaridade.
A família de Noemi de Almeida, que estudou até o primeiro colegial, é
uma das que fizeram um percurso rápido, e sem escalas, da classe C direto para
a miséria.
Com renda domiciliar de quase R$ 4.000 antes da pandemia, ela, o marido e duas filhas agora vivem de doações para comer e moram em um terreno ocupado no Jardim Julieta, na zona norte de São Paulo.
Ali, com redes de água e luz irregulares, ao lado de centenas de casas
improvisadas, temem, dia e noite, acabar despejados e sem ter para onde ir.
Antes da pandemia, Noemi vendia quentinhas a alunos de uma faculdade na
Vila Maria enquanto o marido trabalhava como garçom.
Sem aulas e com o fechamento do comércio, ambos ficaram sem
renda, não tiveram mais como pagar o aluguel e agora ocupam, com outras 2.000
pessoas, a área invadida em meados de 2020.
Com os filhos longe da antiga escola, o casal tenta obter alguma renda
vendendo água e refrigerantes. “Tem dias que ganho R$ 30. Outros, que não entra
nada”, diz Noemi.
A poucos metros dela, Ingrid Frazão, que concluiu o ensino médio e que
conseguia com o marido, até a pandemia, cerca de R$ 3.000 mensais, agora vive
na mesma ocupação e depende, para se alimentar, de doações e de um sopão
distribuído nas redondezas.
Ingrid Frazão em frente ao local onde mora no Jardim Julieta, na zona norte de São Paulo - Lalo de Almeida/Folhapress
Antes o casal se sustentava com empregos formais (ela, faxineira; ele, instalador de alarmes) e conseguia bancar aluguel de R$ 700 mensais na região do Parque Edu Chaves, também na zona norte paulistana. Hoje, não têm a menor perspectiva de sair de onde estão.
No começo, a ocupação iniciada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto) no Jardim Julieta tinha sido organizada para manter terrenos de 4,5
metros de frente por 9 metros de profundidade.
Mas a demanda da população foi tanta que eles foram encolhidos para 4,5
metros por 4,5 metros para acomodar mais gente. Segundo Valdirene Ferreira, uma
das organizadoras do local, pessoas não param de chegar e há filas para tentar
acomodá-las.
De acordo com a FGV Social, quase 32 milhões de pessoas deixaram a
classe C desde agosto do ano passado, ápice do pagamento do auxílio emergencial pelo
governo Bolsonaro, em direção a uma vida pior.
A classe E, com renda domiciliar até R$ 1.205, segundo os critérios da
FGV Social, foi a que mais inchou: cresceu em 24,4 milhões de pessoas. Já a
classe D (renda entre R$ 1.205 e R$ 1.926) aumentou em 8,9 milhões.
Embora o Brasil não possua uma classificação oficial para delimitar
classes sociais, algumas dessas tentativas, como da FGV Social e da consultoria
Tendências (ver quadro), enquadram as famílias de Noemi de Almeida e Ingrid
Frazão —assim como outras encontradas pela Folha no Jardim
Julieta e em ocupações no centro de São Paulo— como ex-participantes da classe
C.
Pandemia e fim do auxílio jogam mais de 30 milhões nas classes D/E
Total de pessoas por faixa de renda domiciliar mensal, em milhões*
Classe D (R$ 1.205 a R$ 1.926)
Classe C (R$ 1.926 a R$ 8.303)
Classes A/B (acima de R$ 8.303)
Mesmo usando parâmetros diferentes, ambas as classificações revelam o
mesmo movimento: encolhimento da classe C, cuja expansão ganhou fama no governo
Lula (2003-2011), e, agora, o inchaço acelerado das classes D e E —a última na
estratificação e que engloba os mais pobres.
Marcelo Neri, diretor da FGV Social, compara a um “terremoto” a mudança
brusca de patamar sofrida pela classe C desde o início da pandemia.
Em sua opinião, o auxílio emergencial foi muito mal calibrado: generoso
demais em 2020 e insuficiente agora, quando a pandemia faz mais mortos e obriga
estados e municípios a interromper atividades.
No auge do pagamento do auxílio, em agosto do ano
passado, 82% das pessoas que eram consideradas muito pobres (renda per capita
abaixo de R$ 246) um ano antes deixaram de sê-lo momentaneamente —para logo
depois voltar à miséria. Em muitos casos, encontram-se hoje em situação pior do
que antes.
“O governo acabou produzindo muita instabilidade, o que é péssimo, em
particular, para os mais pobres”, diz Neri. “A generosidade de 2020 mostrou que
o governo não foi sábio, pois agora não tem dinheiro para socorrer os que mais
precisam em um momento muito difícil.”
No ano passado, o auxílio emergencial foi pago entre abril e dezembro
empregando R$ 293 bilhões (R$ 600 ao mês inicialmente, e depois R$ 300, a 66
milhões de pessoas).
Mas a nova rodada deste ano tem previsão de duração de só quatro meses e
de somar R$ 44 bilhões —15% do total de 2020 (pagando R$ 250, em média, a 45,6
milhões de pessoas).
Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda aos milhões e cai na
miséria
.Vista aérea do Jardim Julieta, uma ocupação na zona norte de São Paulo que se formou em 2020 em uma érea onde funciona um estacionamento de caminhões Lalo de Almeida /Folhapress
Segundo Lucas Assis, economista da Tendências, a massa de rendimentos
(salários, Previdência, programas sociais, etc.) das classes D e E deve
encolher 14,4% neste 2021.
Já a da classe A (empresários, funcionários públicos, etc.) pode crescer
2,8%, sobretudo por causa da recomposição das margens de lucro que os
empregadores vêm perseguindo.
Com menos renda disponível e cada vez mais numerosas, as classes D e E,
que normalmente gastam imediatamente quase tudo o que ganham, não devem
funcionar como grandes propulsoras da atividade econômica neste ano.
“Pior remuneradas, ainda mais informais do que antes e diante da
inflação de alimentos e combustíveis, essas parcelas da população terão pouca
renda disponível”, afirma Assis.
Outra pesquisa, da consultoria IDados e publicada pela Folha,
mostrou que oito em cada dez famílias com rendimento mensal superior a R$ 5.225
também perderam renda no último trimestre de 2020, na comparação com o mesmo
período de 2019.
Diante da realidade dos baixos rendimentos do Brasil, no entanto, essas
famílias podem ser consideradas como pertencentes às classes média, média-alta
e alta —uma minoria, portanto, no país.
Por isso é que preocupam os efeitos da rápida degradação das condições
da numerosa classe C, pois considera-se crucial que ela faça o caminho de volta
para que o país engate um ritmo de crescimento mais acelerado.
Fonte: Folha de S. Paulo, 24.04.2021