O dinheiro é a maior forma de poder para se controlar a sociedade, é através do capital que os grandes empresários conseguem impor suas vontades, pois quem tem a nota controla os políticos, juízes, mídia e a polícia. O setor ( que é a grande minoria da população) que tem o poder através do capital se apropria e adapta as produções da humanidade como a arte, o esporte e a ciência para se gerar lucro.
Não existe nada mais popular no Brasil que o futebol. Nada conseguiu extrapolar tanto do seu contexto inicial do que o esporte que Charles Miller trouxe da Inglaterra. O brasileiro, através de sua forma de enxergar o mundo, adaptou o jogo para deixar mais gostoso de se praticar e atraente para assistir. Com o tempo o futebol se tornou um importante traço na cultura do povo brasileiro, influenciando em diversos âmbitos para além do esporte como na mídia, comportamento e economia. Alguém duvidaria que algo de tamanha influência social seria tomado a força pelos empresários? Nesse conluio entre os donos das megas empresas e políticos não é apenas o faturamento que esta em jogo, mas o controle da população. Então os governos também viram no futebol uma ferramenta a ser possuída para manter seu projeto de poder.
Talvez, o primeiro boicote que o futebol recebeu dos movimentos que atuam na transformação social visando uma sociedade sem explorações e opressões tenha sido nos tempos da Ditadura Militar. Época que era bem nítida que os ditadores utilizavam do futebol para promover seus governos e fortalecer seu regime.
”Onde a Arena vai mal, mais um time no nacional”. Bordão que ficou famoso pois a Arena, partido dos militares, sempre oferecia como moeda de troca por votos em regiões estratégicas a participação de um novo time no campeonato nacional, chegando ao absurdo de termos 94 equipes no campeonato brasileiro de 1979.
Soma-se a isso ao fato do General Médici ter usado a brilhante seleção de 70, que conquistou o tricampeonato mundial, como propaganda do regime militar (mais informações sobre como a ditadura apropriou-se do futebol pode se encontrar nessa matéria do site trivela: trivela.uol.com.br/tema-da-semana-como-ditadura-militar-se-apropriou-futebol-brasileiro/).
Pronto, era o suficiente para que grande parte da esquerda fizesse uma análise rasa, simplista e elegesse o futebol como vilão da revolução.
Esqueceram que o futebol tem na sua essência a origem popular. Muitos clubes no Brasil e no mundo surgiram de associações de bairros, de sindicatos de trabalhadores, estudantes, imigrantes. Graças a esse caráter popular o futebol se transformou num evento que colocava centenas de milhares de pessoas nos estádios de norte ao sul do país, em todos os finais de semana, durante todo o ano. Isso se contarmos apenas os jogos dos times da série A, se relevarmos os outros milhões que acompanham pelo rádio ou tv e também aqueles que não puderam fazer nenhum nem outro mas a primeira coisa que faz quando chega em casa é perguntar quanto que ficou o jogo do seu time.
Esqueceram que na época da ditadura militar surgiu a Democracia Corinthiana.
Não fizeram a menor questão de ver a força feminista nos Comandos Femininos das Torcidas Organizadas, que não falavam de pautas da esquerda tradicional como aborto e dupla jornada de trabalho, mas através de grupos de autoproteção femininos se sentiram seguras pra pautar: ” vou ao estádio sem homem me acompanhar, com a roupa que quiser e nenhum homem vai me incomodar”.
Esqueceram que mesmo com o boicote surgiram torcidas de esquerda nos anos 80, lembro que sempre que ia ao Mineirão tinham as faixas: Crumunistas e PUC- Povão Unido Cruzeirense.
Não acompanharam que a resistência no futebol é algo internacional, como a luta dos torcedores ingleses contra as políticas elitistas de Margaret Thatcher, a ponto da torcida do Liverpool comemorar a morte da ex primeira ministra inglesa: “Você não se importou quando mentiu. Nós não nos importamos com sua morte”.
Não devem conhecer o St Pauli da Alemanha, clube de um bairro de Hamburgo que alterna entre a série A e B do campeonato alemão que no seu estatuto tem os princípios antinazista, antirracista anti homofobia e inclusive já teve um presidente travesti.
Nem sonham que os Bukaneros, torcida do Rayo Valecano da Espanha, criada em 1992, influenciou o clube com sua postura antifascista, respeito ao torcedor adversário e contra o futebol de negócio.
Nem num passado mais recente acompanhou que clubes e torcedores do Egito se uniram na primavera árabe ou leu as notas das torcidas organizadas de São Paulo, em especial a Gaviões da Fiel, apoiando a luta nas jornadas de junho de 2013. Talvez nem ligou que a mesma Gaviões protagonizou a luta contra o desvio da merenda enquanto a maioria da esquerda tava mais preocupada em não perder o poder.
Taparam os olhos quando mesmo com uma onda xenofóbica na Europa, grande parte das torcidas levantaram faixas desejando boas vindas aos refugiados. O próprio Atlético-MG fez uma campanha a favor de acolher os refugiados sírios (empregando alguns no clube) e a Resistência Azul Popular - RAP com ajuda do Cruzeiro, que reservou os ingressos, fez uma campanha para a torcida fazer uma vaquinha e levar 50 haitianos no jogo do Cruzeiro.
Não viu que nesse ano o conselho das torcidas organizadas do Cruzeiro boicotaram a ida num clássico, pois o ingresso mais barato era 120 reais e lançou o manifesto "Boicote ao clássico da burguesia". E organizaram de ver na pirataria em frente a sede do Cruzeiro com direito a festa e ambulantes que as novas arenas proíbem
Não é raro também notar em posts de facebook militantes de esquerda contribuindo com a criminalização das torcidas organizadas, não entendendo que o mesmo procedimento foi feito na Inglaterra para elitizar o futebol e também minar uma das forças mais destemidas perante o poder público e da polícia e que cada vez mais se politiza e entende o seu papel transformador na sociedade.
Torcida organizada é um dos raríssimos momentos em que o pobre se organiza entre seus pares, sem o freio de uma esquerda legalista, uma galera que já apanha da polícia diariamente e que não vai temer caso a mesma partir pra violência em dias de jogos. Isso é muito perigoso para os que querem manter as coisas do jeito que estão.
Não percebem que depois de toda a movimentação da esquerda durante a Copa do Mundo no Brasil, criticando e protestando nas ruas sob o legado maléfico da Copa, que os torcedores mais pobres são os que estão sendo mais atingidos por essa herança da FIFA.
A pergunta recorrente que me fazem é: ” Mas você acha que o estádio é um local seguro, sadio?”. Reconheço que os estádios ainda não são seguros. São machistas, homofóbicos e até mesmo racistas ( pois existe gente falando que no futebol brasileiro não tem racismo). Mas eu devolvo a pergunta: em que país você vive? Estamos num país de maior taxa de homicídios do mundo, que mais mata homossexuais, de uma cultura machista estrutural e que finge que racismo é coisa de estrangeiro.
Por que o futebol, a coisa mais popular do Brasil, a maior concentração do senso comum não refletiria isso tudo?
Estão querendo que o futebol se torne uma bolha onde as coisas ruins não acontecem através da segregação, deixar o espaço apenas frequentado por pessoas que tiveram o acesso a informações, um local muito parecido que boa parte da esquerda se limita a frequentar.
Não vejo o Mineirão (estádio que frequento) com contradições tão diferentes das ocupações urbanas ou até mesmo do carnaval e nem por isso questionamos se esses locais não devem ser de luta.
Mas enfim, a esquerda parece acordar. Entendeu que o futebol se tornou o que a direita quer: um espaço que se torne proibido falar de política, de se questionar, ” futebol e política não se mistura” (como se já não estivesse misturado há muito tempo por setores políticos reacionários). É muito parecido com que querem fazer com as escolas, e não é a toa que fazem de tudo pra colocar o futebol junto com a política ( e a religião também) para formar a trindade imaculada que não se pode debater.
Mas o despertar da esquerda com o futebol veio no desespero da necessidade de propagandear a perda de direitos que teremos com o governo Temer. O que eu vejo por enquanto é que boa parte da esquerda mais se aproveita da visibilidade do futebol do que realmente considerar as arquibancadas como um potencial revolucionário. Como efeito midiático tem o seu valor, mas como um processo de diálogo com a torcida não funciona. Assim como na periferia se chegar alguém do asfalto do nada, apenas pontualmente não existirá espaço para troca de ideias, também em (quase) nada acrescentará se eventualmente suspender faixas de protesto em estádio (a não ser se for iniciativa da própria torcida organizada, como é no caso da Gaviões).
Os torcedores sabem muito bem quem “é da arquibancada” e quem dá o devido valor de frequentá-la. Se tem algo que foi bom nas Jornadas de Junho de 2013" é que conseguimos dialogar com milhares de pessoas que não tínhamos contato. Boa parte nunca tinha escutado o que falamos, também aprendemos muito com certos vícios nossos que essas mesmas pessoas nos alertaram. O resultado disso foi que a rede de apoio aumentou e hoje somos mais fortes.
Excluir o futebol como local de luta pode ser apenas um erro estratégico, mas muitas vezes também é fugir da realidade e preferir continuar na sua zona de conforto onde todas e todos falam, vestem, se comportam e concordam com você.
Existe um preconceito que quem assiste futebol é um bando de idiotas alienados que só sabe gritar gol enquanto tudo de ruim acontece no país. Como se as pessoas tivessem que largar tudo que te dessem prazer ( exceto os eventos que a esquerda acha legal) até as coisas melhorarem. Assim, lá do alto, ficará fácil desprezar o futebol segurando o cetro do purismo.
Não estou pedindo que geral colem nos estádios, sei que muitos simplesmente não se identificam, só peço que não avacalhem. Uma ressalva a parte é que se as minorias que sofrem dos preconceitos citados tão presentes nos estádio não se sintam a vontade de frequentar esses espaços e com isso despertar sentimentos negativos ao futebol é totalmente compreensível e não é meu local de fala para debater isso. Pontuações são construtivas, mas discursos pejorativos que beiram clichês conservadores só atrapalham.
A revolução será com bumbos, bandeiras e sinalizadores !