Bolsonaro
e Olavo de Carvalho tentam bani-lo com gritos e xingarias. Que
tolos: quanto mais berram, mais dão razão ao educador que dizia:
“a classe dominante brasileira jamais desejará que as maiorias
sejam lúcidas”.
OUTRASPALAVRAS
Publicado
15/04/2019 às 19:18 - Atualizado 15/04/2019 às 20:52
Em
29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”,
da Folha
de S.Paulo,
Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o
analfabetismo no Brasil.
“Em
tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo
Freire. O que faltou foi decisão política. A
sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista.
Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um
bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado
inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas
que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante
mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as
massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.
Passados
25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais
e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora
que assola o país.
Parece
ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997).
Cinco décadas atrás, Freire foi preso
e exilado pelos
militares após
o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de
alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em
projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400
jovens e adultos.
A
experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional
por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e
a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a
defendê-los de maneira democrática.
O
método partia de palavras selecionadas entre as questões
existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando
acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e
lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar
as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte
integrante do ato de educar.
Os
golpistas de 64 intuíram
que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar
poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade
de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que
setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus
destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método
e seu autor.
Em
18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido
para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377
agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão
Nacional da Verdade por
violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar—
divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo
Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão
imediata dos menos favorecidos”.
“Sua
atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma
extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”,
escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum
e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido
Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado
sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.
Na
apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da
Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo
FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos
anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam
contra qualquer governo democrático da América Latina, teria
alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença
política das classes populares… Todos sabiam da formação
católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma
aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos
políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação
democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo
Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de
democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.
E
acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à
expressão das insatisfações sociais, é porque estas são
componentes reais de uma situação de opressão”.
Exilado
por 15 anos — tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça –,
Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente
como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido
diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base,
movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio,
trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria
cerca de 150 viagens a mais de 30 países.
No
seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na
Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São
Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As
eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos
de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe
militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente
estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas
eleições de Lula e Dilma.
Frente
às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não
completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor
Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas
orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e
acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no
campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas.
Em
1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria
entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma
angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à
morte no dia seguinte.
Paulo Freire seria agraciado em
vida e in
memoriam com
48 títulos de doutor
honoris causa por
diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de
ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo
docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações
internacionais.
Diversos
outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo
da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no
exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros
acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de
pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços
de movimentos sociais e sindicais.
Em
1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012,
foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da
agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no PSOL).
Seus
livros se espalharam pelo mundo. Pedagogia
do Oprimido ganhou
tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do
professor Elliott Green, da London
School of Economics,
afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área
de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como
Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a
aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades
de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue
Internationale d’Éducation de Sèvres,
publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos
principais educadores da humanidade.
A
despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo
reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a
recente ascensão de setores conservadores.
Na
onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise
do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas
antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum
encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação
marxista, basta de Paulo Freire!”.
Com
a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do
ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam
reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo
de Carvalho,
de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em
palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato
Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos
que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com
um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E
complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá
no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento
crítico”.
Em
seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham
Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação
tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem
resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente
gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.
A
tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes
sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos
textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político
em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na
qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido
nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que
seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é
nos partidos, não nas escolas.
Não
há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi
comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que
nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas.
Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não
se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados,
que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os
ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no
educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o
seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.
Um
dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento
Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica
nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para
vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de
perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente
neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da
educação brasileira, tentam desqualificar Freire.
Uma
proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas
necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de
patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa
batalha, a demanda não foi aprovada.
Freire
acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e
aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem
ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático
e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha
o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse
mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no
domínio dos conteúdos.
Era
contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o
aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é
sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste
processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo
educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria.
Freire
foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por
sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por
ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos
educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade
nos corredores das universidades, e nem esperava por isso.
Coerente
com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e
críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito.
Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se
envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação
como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em
disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no
debate de ideias para constituição do seu futuro.
Não
acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos
pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do
ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez.
Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores
para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a
cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os
livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964,
numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu
grupo político.
Demitido
antes de completar cem dias no cargo, Vélez apresentava
claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente
inoperante para os problemas reais da sua pasta.
O
novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração,
atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez,
nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um
seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado
o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga
comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios
de comunicação e, inclusive, setores do mercado.
Em
sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais
pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar
pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda
crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe
na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus
interesses.
Em
seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento,
tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as
diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu
compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o
marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no
livro O
Caminho se Faz Caminhando,
reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me
sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.
Quando
perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os
abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início
deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia
representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua
“moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.
Freire
deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte,
posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em Pedagogia
da Indignação.
Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos
Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo
no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo
imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens,
indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa
“estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do
pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário,
do índio neste pensar?”
Diante
do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de
lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria
afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a
sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
Em Política
e Educação Popular, um
dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso
Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos
estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização
das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos
autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970.
Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da
realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo:
“Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando
da realização da figura do educador proibido de educar”.
Não
é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil.
*
Doutor
em História e Sociologia da Educação pela USP
(1991). Professor visitante no Centro de Estudos Brasileiros na
Universidade de Oxford.
Participou do Conselho Técnico Científico
de Educação Básica da CAPES. Foi professor do Programa de
Pós-graduação em Educação Currículo da PUC-SP. Tem experiência
na área de Educação, com ênfase em Tópicos Específicos de
Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação,
educação de jovens e adultos, educação de adultos, educação
popular e terceiro setor.
Autor
dos livros: Novos caminhos da educação de jovens e adultos, ONGs e
Universidades – Desafios para a cooperação na América Latina, A
educação entre os direitos humanos, entre outros.
O
professor Sérgio Haddad, do programa de pós-graduação em Educação
da Universidade de Caxias do Sul, lançará, nesse ano, uma biografia de Paulo Freire ,pela editora Todavia